O SILÊNCIO DOS ESPAÇOS INFINITOS

O ato de estar só , exposto ao silêncio e ao infinito do espaço, vem, ao longo dos tempos, sendo investido de um poder de criatividade. Poderia falar de Arquimedes saltando da banheira e gritando heureca. Ou Newton sendo acordado por uma maçã que lhe cai sobre a cabeça. O fato é que não sabemos se estas cenas realmente aconteceram e tudo indica que foi imaginado para explicar a descoberta do Empuxo e das Leis da Gravidade.

Poderia, por outro lado, começar com Freud e o seu esplêndido isolamento. Falar da idéias que emergiram nas suas caminhadas solitárias pelas montanhas ou seus passeios pelas ruas de Viena. Teríamos também sua cartas, escritas sob o silêncio da noite, mas tudo isso, embora não totalmente esgotado, é bastante conhecido.

Poderia falar de Kubrick cineasta falecido que fez uma filme maravilhosamente assustador sobre a solidão: O Iluminado. Um escritor se encerra num Hotel de veraneio durante a baixa estação, isolado pela neve no meio das montanhas.

Por uma opção arbitrária me transporto para o verão russo de 1898. Constantin Stanislavsky, diretor do Teatro de Moscou, um inovador da linguagem teatral, passa uma mês e meio sozinho numa torre na Ucrânia. Está ali para preparar a encenação da peça A Gaivota, de Anton Chekcov. Do alto da torre vislumbra a mis-en-scène que marcará a história do teatro mundial e sua estréia, meses depois, revolucionará o mundo das arte lançando Chekcov e o próprio Stanislavisky ao estrelato. O texto se apresenta com um vigor tão intenso e desconcertante quanto a estréia de Esperando Godot de Samuel Becket nos anos 50.

Dois anos antes, 1896, a peça de Chekcov na mão de outro experiente diretor de teatro, resulta num estrondoso fracasso. Stanislavsky examina o texto. Ali onde está vislumbra uma bela paisagem, com campos que se abrem sobre brumas cálidas. No celeiro ao lado da torre ele vai ensaiar a peça, mas enquanto isso, entre 12 de agosto e 20 de setembro, sentado em sua mesa, amassado pelo isolamento, tenta decifrar a quebra-cabeça proposto por Chekcov que se apresenta com dificuldades não usuais. A peça fora escrita numa forma não ortodoxa, razão do seu fracasso anterior, e exigia do encenador uma busca de significados novos. Descreve a realidade medíocre do dia-a-dia e, para os críticos, a existência monótona de personagens sem cor era a marca da ineficiência dramatúrgica. Faltava coerência a trama e a ação dramática era marcada por uma inércia das personagens e, portanto, eram evidentes as falhas em sua dramaticidade.

Stanislavsky sentia-se oprimido pelos seus pensamentos. Escreveu para sua mulher enquanto trabalhava na torre, a seguintes palavras:

“Tudo isso não é sério. É, com certeza, uma devoção inútil uma pessoa se dedicar a este tipo de vida. Será que não estou fazendo o mesmo? Estes pensamentos me preocupam muito. Pensava que o palco era uma ocupação séria e digna, mas nada parece fazer sentido. Estou começando a duvidar não só da minha vida mas a de muita gente está sendo desperdiçada. De novo, não posso evitar de pensar que devo fazer algo diferente para viver.”

Porém, estes sentimentos de desamparo, longe de o afastar do desafio, o empurram para o centro das problemáticas do enredo. Stanislavsky, mergulhado na crise, incendia no absurdo. Sente-se acossado por pensamentos que não pode controlar e não sabe o que fazer com eles. Sua impressão é de loucura, de falta de senso, de caos.

Impossível pensar que ele não estivesse afetado pelo clima da peça, pela falta de sentido do mundo, pela inércia aristocrática e pela necessidade urgente de transformação social que o texto anuncia. Evidente também que ele possuía um equipamento frágil para o tamanho da tarefa para o qual ele se propunha.

Dez anos de teatro amador mais uma década organizando e atuando em produções da Sociedade de Arte e Literatura. Tinha um bom prestígio com ator e ganhava uma certa reputação com diretor. Sua fama como professor se espalhava, mas mesmo assim não estava preparado para montar A Gaivota, principalmente porque seus sucessos era ligados a uma estética realista. Além disto, em sua projetos de modo geral fazia o papel central e sua interpretação exuberante tomava conta da encenação. A Gaivota foge da construção realista. Pede cenas de multidão, panorâmicas e efeitos especiais. No entanto, A Gaivota é interpretação e nada mais do que interpretação. Possui quatro personagens centrais e vários outros extremamente bem delineados, cada um com pelo menos um momento de com-paixão, no qual tanto o palco quanto a platéia são tomados pelo conflito da personagem de modo total.

Para essa tarefa Stanislavsky se debruça sobre os originais do texto e, sobre a cópia, faz em torno de 500 anotações que vão desde as relações amorosas até o latido dos cães. Tomadas juntas, estas notas representam uma versão especulativa da peça., um grande plano de vôo. Em primeiro lugar estão notas relativas as imagens. Desenhos do palco, descrições dos lugares, diagramas dos movimentos das personagens e dos grupos e ainda mais de um centena de pequenas sinalizações visuais. Em segundo lugar, os efeitos sonoros, as pausas, os ritmo das falas, os timbres e a respiração do espetáculo. Depois temos as personagens na busca de uma sensorialidade que o diretor tratará de orquestrar e por fim o significado em si. O diretor passa a produzir o sentido que ele imagina que o texto tem, isto é, a sua concepção de espetáculo.

É certo que a encenação de uma peça onde se envolve na produção um grande grupo, nada mais é a realização de um processo construído na solidão de um escritório. Mesmo os processo tão em voga nos anos 70 e 80, as criações coletivas, não escaparam desta sina. Sobreviveram as que foram concebidas com uma visão transcende produzida na possibilidade metafórica ao passo que encenações que visam a simples transcrição de atos sociais para o palco, se perderam na ausência de universalidade.

Noutro extremo, o personagem de Kubrik, o escritor que, no inverno, se isola no Hotel de veraneio, escreve um romance. Pode-se se ver na tomadas do filme o seu esforço criativo. Ele bate obstinadamente a máquina de escrever – era o que se usava na época – e dá a impressão de uma onda criativa. Pilhas de papéis indicam o desenvolvimento, um clima compulsivo invade o escritor e percebe-se a angústia de quem se encontra em pleno processo criativo. No final do Iluminado, se revela o texto do romance. Sobre as folhas empilhadas se lê uma única frase repetida milhares de vezes. A mesma frase, monótona, repetitiva e psicótica que se avoluma em pilhas e pilhas de papel. Assim, o escritor, imerso sempre na mesma frase está tentando desesperadamente se livrar dos pensamentos que o invadem e das as imagens que acionam o seu universo. A sua luta é para congelar a imagem-em-ação e na medida que o faz entra num labirinto e nele morre congelado pela neve de seus pensamentos.

Mesmos sentimentos ocorreram ao diretor russo. A perda de sentido e a sensação de loucura se deve a coragem de Stanislavsky, Satan-nislavsky, de pensar seus próprios pensamentos. Foi o que fez Freud, outro demônio. O esplêndido isolamento nos obriga a pensar nossos próprios pensamentos, e isso implica em suportar a ausência deles até que algo se forme. Sempre sentimos angustia frente o novo e a maneira de lidar com ela é usar o passado para nos dar um sentido imediato. Suportar a ausência de pensamentos é escutar o nosso silêncio mais profundo e ruidoso e tocar a nossa loucura. É o momento de encontro com a verdade e a verdade é a verdade do inconsciente. É a possibilidade de aprender com a experiência do próprio inconsciente. A solidão implica em estar só com alguém ou com algo que não é, no entanto, redutível a um substantivo pois é da ordem do onírico e do transitório. Um inconsciente feito de maçãs, banhos, caminhadas e torres. Maças são idéias que caem nas nossas cabeças quando deixamos nosso corpo imerso nas águas do inconsciente.

Suportar o desconhecido também significa não aceitar respostas fáceis pois estas invariavelmente nos remetem ao conhecido ao estandartizado e aos clichês. Não se trata, no entanto, de inventar a roda e criar o que já se criou, mas a coragem de pensar os próprios pensamentos implica na aproximação de uma verdade até então não revelada. Significa acatar o que se sabe e manter uma valência aberta para uma possibilidade de algo novo aparecer, a capacidade negativa que é exemplifica por Bion no poema de John Keats[1]. Todo ato criativo implica na produção de um conteúdo que rompe com um continente. Ou seja, toda obra criativa significa uma ruptura com o estabelecido.

Por fim, quero falar de uma experiência que vivi recentemente quando uma paciente se defrontava com uma tarefa muito solitária. Estava com câncer avançado e havia sido internada por graves problemas clínicos quando, na UTI, eclodiu um surto. Quando cheguei no Hospital já estava bastante medicada. Falava com muita dificuldade. O encontro era tenso pela situação em si, mas tínhamos um problema extra pois, apesar do esforço, ela não conseguia se comunicar. Logo se evidenciou que estava lúcida. No entanto, quanto mais força fazia, mais boca se travava e as palavras emergiam incompreensíveis. Como haviam outras alterações tais como perda de controle de esfíncteres, eu não sabia se a dificuldade era devido ao avanço do tumor com possíveis metástases ou uma acatisia pelo uso de anti-psicóticos. Ficamos um tempo tentando fazer contato. Depois, cansada, ela jogou o corpo para trás, acomodou-se no travesseiro e olhou para a janela. Parecia desistir do contato. Frustrado, pensei no que era mesmo que eu estava fazendo ali. Então, falou uma coisa que conseguiu entender. “Olha lá.” Eu perguntei olhar o que? Ela disse: “Olha a janela.” Olhei desanimado. Os prédios antigos, o movimento da rua, o estacionamento lotado e uma nesga de céu azul. Perguntei: “O que que tem?” Ela me respondeu:

- Bonito!

A pulsão de vida se manifestando no momento mais solitário que uma pessoa pode atravessar. Seja ela Stanislavsky, Freud, Newton, Arquimedes, Chekcov ou essa paciente que me referi. Frente a morte, frente ao caos, frente a toda falta de significado, a vida insiste em buscar um sentido. Quando se evita o repetir paralisante das mesmas frases e clichês, criamos as condições imaginativas de suportar a desconexão até que a maçã caia sobre a cabeça e junte as partes, ligue as imagens, monte as cenas ou se possa simplesmente enxergar o belo. Essa capacidade humana de criar sentido no desespero e no desamparo, frente ao terror que a sombra da morte nos impões, frente ao vazio do espaço infinito que amedronta, se encontra essa força vital que mergulha no desconhecido, essa força que urge, navega na solidão e emerge na solidariedade gerada pelo exercício da criação, é mesmo bonita.

Comentários

Nei Duclós disse…
Belo texto. Tuitei e facebookeei. Bom demais.

Postagens mais visitadas