OS FUMANTES (uma pequena tragicomédia)

OS FUMANTES

DE JÚLIO CONTE

PESSOAS SENTADAS NA SALA DE ESPERA. TODOS COM ALGUMA COISA QUE OS AJUDE A RESPIRAR. CHEGA UM HOMEM SEGURANDO O SORO. UMA ENFERMEIRA COM ELE.

ENFERMERIA

De zero a dez, qual a nota que o senhor dá para a sua falta de ar.

IRINEU

Minha falta de ar?

ENFERMERIA

É, de zero a dez. Zero é nada, e dez o máximo.

IRINEU

Uma nota para minha falta de ar?

ENFERMERIA

É de zero a dez.

IRINEU

Zero a dez?

ENFERMERIA

Zero a dez.

IRINEU

Agora.

ENFERMERIA

Isso, qual a nota que o senhor dá para a sua falta de ar, agora.

IRINEU

Eu estava na cama há muito tempo. Uma semana sem caminhar...

ENFERMERIA

Então, qual é a nota?

IRINEU

Zero a dez?

ENFERMERIA

É. A falta de ar.

IRINEU

Vou deixar por três.

ENFERMERIA

Não, três não pode ser. Estou vendo que o senhor está sofrendo mais.

IRINEU

Quanto tu acha?

ENFERMERIA

Não sou eu que tem que achar.

IRINEU

Mas tu não aceitou o três.

ENFERMERIA

É três eu vejo que não é.

IRINEU

Então deixa por quatro.

ENFERMERIA

Por favor.

IRINEU

Cinco e não se fala mais nisso.

ENFERMERIA

Não estou negociando. Eu preciso saber o tamanho da sua falta de ar para colocar na sua ficha. O Doutor vai avaliar o resto.

IRINEU

Seis, está bom?

ENFERMERIA

Não sei, é o senhor que sabe.

IRINEU

Seis e não se fala mais nisso.

ENFERMERIA ANOTA E SAI.

Entra um homem na cadeira de rodas e com visível falta de ar.

GERALDO

Foi o cigarro?

IRINEU

Pra mim foi e pra ti?

GERALDO

Também.

IRINEU

Como é que está?

GERALDO

O que?

IRINEU

Qual a nota que vai dar para a falta de ar.

GERALDO

Que nota é essa?

IRINEU

De zero a dez.

GERALDO

Pra que isso? Te perguntaram isso?

IRINEU

Para ver para onde vão te levar.

GERALDO

Eu já sei para onde vão me levar.

IRINEU

Pra onde?

GERALDO

Pra cova. Pro cemitério. Eu chamo o ar para dentro de mim e não adianta. Também, cinqüenta anos fumando.

IRINEU

Cinqüenta?! Me ganhou por sete.

GERALDO

Sete?

IRINEU

Eu fumei quarenta e três anos.

GERALDO

O que tu fumava?

IRINEU

De tudo. Comecei com Hollywood.

GERALDO

Forte e seco demais. Te lembra do Continental.

IRINEU

Aquilo era cigarro. Um soco nos peito. De manhã uma tragada de Continental parecia que dava para ver a nicotina correndo pelas veias.

GERALDO

Esses light era pior. Parecia que fumava vento. Minha mulher disse fuma pelo menos os light. Só que daí em vez de duas carteira eu fumava seis.

IRINEU

Que despesa!

GERALDO

Foi isso que assustou a velha. Além de viciado ainda vai gastar toda nossa aposentadoria, ela reclamava. Voltei pro Carlton.

IRINEU

Esse também é caro. Cigarro bom é mata-rato.

GERALDO

Empesta a roupa.

IRINEU

Mas tu lavava a roupa todo o dia?

GERALDO

No início sim, depois só pendurava no varal, o vendo tirava toda a murinha.

IRINEU

Eu acordava para fumar. De duas em duas horas eu acordava.

GERALDO

E a tua mulher?

IRINEU

Fez eu dormir na sala.

GERALDO

Essa mulher também não compreendem um homem.

IRINEU

Mas foi bom, porque na sala eu podia fumar, no quarto não.

GERALDO

Daí, nem levantava.

IRINEU

Nem levantava, já deixava o cigarro ali no lado do sofá com o isqueiro. Acredita que teve noite que eu fumei sem me acordar.

GERALDO

Não!?

IRINEU

Foi, notei porque quando acordei estava queimando o cobertor. Joguei tudo debaixo chuveiro e abri a água. Foi por um triz. A essa hora podia estar morto.

GERALDO

Vira essa boca pra lá. Sabe, uma coisa tenho que te confessar. Eu não levantava mais.

IRINEU

Pra fumar?

GERALDO

Pra transar. O amiguinho ali embaixo foi diminuindo de tamanho.

IRINEU

Sabia que as pessoas encolhiam quando envelhecem, mas o pau encolhe nunca tinha visto.

GERALDO

Contigo não aconteceu?

IRINEU

Não. Quer dizer, eu não tinha vontade. É diferente. Mas encolhe não encolheu. Pode quanto ter perdido a forma, aquela disposição.

GERALDO

É aquela disposição faz falta.

IRINEU

É.

GERALDO

Que nota tu dá para a disposição?

IRINEU

Zero a dez?

GERALDO

Isso.

IRINEU

Hoje?

GERALDO

Hoje.

IRINEU

Vale número negativo?

GERALDO

Quer saber, trocaria todo o meu pau, tamanho normal, funcionando, por um par de pulmões.

IRINEU

Aquele cigarrinho de manhã.

GERALDO

Aquele depois do café.

IRINEU

Aquele depois de trepar... (GERALDO OLHA PARA IRINEU INTERROGATIVO.) Quando trepava.

GERALDO

Ah, sim.

IRINEU

Pior é parei tarde. Nem adianta mais parar.

GERALDO

E eu então. Tenho um terço do ápice do pulmão direito.

IRINEU

Ainda sobrou um pouco aqui na base esquerda do meu.

PAUSA.

GERALDO

Tu não tem um cigarrinho aí.

IRINEU

Esta louco, nós estamos num hospital.

GERALDO

Perguntei por perguntar.

IRINEU

Tenho.

GERALDO

Tem?

IRINEU MOSTRA UM CIGARRO ESCONDIDO ENTRE OS DEDOS.

GERALDO

Enfermeira. Preciso ir no banheiro.

IRINEU

Posso te acompanhar?

GERALDO

Se conseguir caminhar até o corredor.

IRINEU

Eu vou contigo.

GERALDO

Só um instante. Oh, enfermeira. Estou sentindo um pouco de falta de ar.

ENFERMEIRA

De zero a dez, quanto.

GERALDO

Uns oito.

ENFERMEIRA

Espera um pouco então.

APANHA UM CILINDRO DE OXIGÊNIO ENTREGA PARA GERALDO.

ENFERMEIRA

Pode ir no banheiro. O senhor também Seu Irineu. Ah, cuidado com o oxigênio.

IRINEU

Pode explodir?

ENFERMEIRA

Só se tiver uma faísca por perto. O excesso de oxigênio pode provocar uma parada respiratória. Vocês são retentores de CO2 e por isso a freqüência respiratória é dependente da quantidade de O2. Não usa isso aí demais.

GERALDO

Pode deixar.

ENFERMEIRA SAI.

IRINEU

Tem isqueiro?

GERALDO

E não pra ver!

OS DOIS SAEM. O PALCO SE ENCHE DE FUMAÇA. DEPOIS UMA EXPLOSÃO.

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