O Nascimento de Uma Pedra - outra peça de Júlio Conte

O NASCIMENTO DE UMA PEDRA

(NUM PALCO ABERTO DESNUDO, PODE-SE VER APENAS UM TAPETE QUE SE VISLUMBRA SOB UMA PENUMBRA A SILHUETA DE UMA MESA OBSTÉTRICA MAIS AO FUNDO. O CLIMA É DE REALIDADE TEATRAL E NÃO SE PROPÕE A REALISMO, MAS SIM A O DESNUDAMENTO DO PRÓPRIO JOGO TEATRAL, O BRINCAR COM AS CONVENÇÕES, QUE DEVE SER A ALMA DESTE TEXTO, UM JOGO ENTRE O ÉPICO E O DRAMÁTICO. A INTENÇÃO É QUE NÃO SE DÊ MAIS PESO DO QUE O NECESSÁRIO PARA A PEÇA ANDAR. ATRIZ ENTRA EM CENA INTERPRETA ALGO QUE NUM ROMANCE SERIA UM NARRADOR ONISCIENTE.)

ATRIZ
A história, como toda boa estória, começa com a dor. (GRITA.) Ai... (SEGURA O VENTRE E GEME DE DOR. DE REPENTE, PÁRA E FALA NORMALMENTE COM A PLATÉIA.) Existem várias dores no mundo. A dor de dente, a dor de corte, a dor da separação, dor da despedida, a dor da frustração, a dor profunda, a dor superficial, a dor gostosa, a dor de parto... (CORTANDO.) Só um pouco, desculpe, meu nome é Maria do Carmo. Sou atriz. Esta história começa assim. Maria Eduarda Lins e Silva Velloso Cavalcanti e sua dor. Dor de dente, dor corte, dor da separação, dor da despedida, dor da frustração, a dor profunda, a dor superficial, a dor gostosa, a dor do parto... enfim, ela e sua dor. Agora, exatamente hoje, ela está com trinta e dois anos, três meses, dois dias e (OLHA O RELÓGIO.)seis horas. Essa não é a minha idade. Eu estou com... (SE DÁ CONTA DA INDISCRIÇÃO.) Não vou dizer a minha idade. Isso dói. Dor da idade! Faltava essa. Uh, como dói! Dói em pelo menos três lugares, dói no espelho, ah, o espelho, dói no corpo, os movimentos ficam difíceis, e dói no olhar dos outros, no desprezo com que te olham, pessoas da mesma idade que você te olham e você vê que elas pensam “meu Deus eu não estou em idade de andar com esta velha” ou a mais radical: olham para você e não vê. A indiferença. A indiferença é a pior das dores. Então, para evitar este triplo sofrimento, a dor do espelho, a dor do desprezo e a dor da indiferença, não vou dizer quantos anos eu tenho nem que me torturem, e não adianta insistir, podem me bater, podem me esfolar que eu vou rir, uma dor gostosa, pode me bate que eu não vou falar. Mesmo sendo uma atriz, e como atriz trabalho o meu corpo e a minha mente para alcançar um estado de não-julgamento e de não-preconceito, de modo que estas questões menores tais como idade, peso data de nascimento, etc. Não me atingem. Mesmo assim... (VACILA, E FINALMENTE CONVICTA) Não vou falar a minha idade. Não que eu tenha algum problema com ela, mas simplesmente eu não acho saudável falar de assuntos... desagradáveis. Além do mais, um ator não tem idade e uma atriz menos ainda. Então eu vou interpretar uma arquiteta. Eu já falei que era um arquiteta? Pois é, Maria Eduarda é uma Arquiteta, não dessas que trabalham com decoração, interiores, não. Ela gosta de meter a mão, é uma mulher de ação, uma mulher pragmática. Não acredita em fantasma, em vida depois da morte, não acredita em regressão as vidas passadas e só acreditariam em Ghost se o próprio Patrick Swaize aparece na frente dela. Ainda mais porque está separada, ela tem dois filhos, três ex-maridos dos quais recebe pensão de um e paga para outro e é indiferente ao terceiro porque este tanto pede dinheiro emprestado como empresta e por isso é o melhor amigo dela. Este personagem é de fato meio estranho, talvez um pouco inverossímil, pois nunca vi ex-esposa ser amiga de ex-marido e vice-versa. Além do mais ela trabalha e trabalha muito. Não é uma work-holic, mas usa o trabalho como o sentido de uma porção de coisas sem sentido. Uma mulher comum. Nenhum motivo especial para ser personagem de teatro. E, no entanto, ela é a personagem principal desta história. Mas estas coisas, arquiteta, separada, três ex-maridos e, destaque, dois filhos, isso a gente só vai saber no fim. Este detalhe, apesar do destaque, é absolutamente irrelevante, mas eu o coloco para conferir um tom de suspense. Vocês saberão, dramaticamente, só no final, porque agora que eu falei vocês já sabem. Como adulta ela tem um olhar sedutor (FAZ) um pouco arrogante (FAZ) afinal ela vem uma família tradicional do Rio de Janeiro e como toda família tradicional, se relaciona com uma certa (BUSCA A PALAVRA) superioridade. Sabe aquele olhar que diz: “você é um lixo e eu sou o máximo!” Sabe? Esse. (FAZ, OLHA PARA A PLATÉIA E DIZ) “Você é um lixo e eu sou o máximo!” (PARA A PLATÉIA) Desculpe não foi com você. Fico um pouco constrangida. Isso é um pouco difícil de interpretar, pois eu não sou de uma família tradicional. Minha família é gaúcha, do Alto Uruguai. Eu sou... diríamos assim... pêlo-duro. Como o nome já diz é tipo grosso. Como se fosse um animal composto de várias raças e a pelagem tivesse a característica de ter agüentado muita, mas muita porrada, mesmo. Desculpe a palavra, mas é isso. Vocês não conhecem o Alto Uruguai. As pessoas por lá, a maioria pêlo-duro, já foram importantes, tiveram uma riqueza que se perdeu. Tiveram várias culturas, muitas guerras e... Bom, daí que viraram... pêlo-duro. O olhar deles é humilde. (FAZ) submisso (FAZ) trabalham muito, ganham pouco, como a maioria dos artistas... A maioria dos artistas são... pêlo-duro... Não todos, é claro! Então, é difícil para eu fazer esta mulher... Tá, não vou dizer de novo que sou pêlo-duro... (CADA VEZ QUE ELA REPETE “PÊLO-DURO” FAZ UM SUSPENSE, UMA PUXADINHA NO HUMOR E TRANSFORMA ESTA PALAVRA NUM BORDÃO) Mas enfim ela é de uma família tradicional e carrega aquele orgulho de ter feito alguma coisa especial embora tudo que tenha feito foi... digamos assim... tradicional... A tradicionalidade advém do simples fato de ter um parentesco com algumas coisa cujo nome é parecido com alguma rua. Por exemplo: “Sou contra-parente do Men de Sá e do Estácio de Sá”. “Minha mãe é filha do neto do amigo do Viera Souto”. “Sou amigo do parente do irmão do primo que é tio do neto do Barata Ribeiro”. Pior ainda se a pessoa é filha legítima da Nossa Senhora de Copacabana! Engraçado, nunca conheci ninguém parente da “Penha”... Pois é Maria Eduarda, tem estes parentescos... que vocês já estão cansados de conhecer... (BORDÃO) Tradicional... Já falei para você como ela se parece com adulta. Mas não é a Maria Eduarda adulta que interessa nesta história. A Maria Eduarda adulta, com seu olhar sedutor (FAZ), com sua arrogância (FAZ, ENCARA O PÚBLICO, ESNOBA, PODE FALAR “VOCÊ É UM LIXO!”, ETC.), com seu parentescos... tradicional... só aparece aqui neste começo. Isso aqui é uma pracinha. E o terreno da pracinha foi negociado com a Prefeitura e Maria Eduarda, a arquiteta, olhar sedutor, um pouco arrogante, separada, dois filhos, trabalha para a Prefeitura e este terreno está destinado a mais uma obra do Prefeito XXXX. Vocês sabem muito bem que os patriarcas das famílias tradicionais criaram as Prefeituras para os netos e bisnetos trabalharem... tradicional... Claro que a plebe invejosa criou o concurso público para dar uma chance igual para todos, mas eles sabem que nem sempre a igualdade é igual para todo o mundo. Essa peça é sobre as desigualdades. Claro que todo mundo sabe que tem muitas formas criativas de burlar as leis... E a melhor delas é trabalhar criando as leis... Bom, voltando a história, ela entra para fazer as medições, carrega plantas, trena e começa a medir o terreno. (ABRE UM TAPETE DEFININDO O ESPAÇO DA PRAÇA E, AO MESMO TEMPO, DO JOGO) Ela vai executar um projeto do Prefeito XXX. (COMO SE FOSSE DAR UMA INFORMAÇÃO TÉCNICA) Vão construir um buraco e desenvolver um engarrafamento. Mas depois, se diz que melhora. Então ela, carregando plantas e a trena, entra no buraco. Ela está emburacada! Sabe o que é ver a vida do buraco? A perspectiva é a seguinte: sempre, invariavelmente sempre, para todos os lados, o escuro, o breu em volta, e lá em cima, inalcançável, um pedacinho de céu expectante. Talvez seja por isso que as muitas pessoas quando entram no buraco, se matam, pois nada é mais evidente do que uma pessoa que vê o céu e não pode tocar que ela se mate. A nossa atração pela vida é a mesma que pela morte, nosso fulgor pelo movimento é tão intenso quanto nossa sedução pelo nada, o movimento está para o repouso assim como o sofrimento está para o gozo. Gil, vocês reconhecem, não é? (ENTRA, INTERPRETA) Ela olha para as coisas com um interesse desinteressado... (OLHA, EXAMINA E MEDE) ela olha assim por causa do parentesco... (INTERPRETA) Está vai ser a única participação dela no tempo presente, com exceção do final que eu vou repetir este gesto antes de finalizar a peça. Vou fazer de novo. (FAZ) Entenderam, alguma dúvida? Vou fazer de novo. (FAZ, CADA VEZ ACRESCENTA UMA BOBAGEM QUALQUER, UM OLHAR, UM GESTO, UM CACO) Tá bem? Enquanto ela mede... (CLIMA MUDA DA DESCONTRAÇÃO PARA A EMOÇÃO, COMO SE BUSCASSE ALGO...) Ela sente alguma coisa. Não dá bem para compreender o que ela sente porque vem de um lugar desconhecido, de alguma imagem, de algum imã interior. (DIRETA E ÍNTIMA PARA O PÚBLICO) Vocês por certo já experimentaram certas impressões que nunca chegamos nem perto de decifrar e acompanha a gente o resto da vida. Pensem nisso. O que eu estou falando talvez seja a coisa mais importante que eu tenho para dizer nesta peça. Se é que e tenho mesmo alguma coisa para dizer. Ela sente este “alguma coisa” e olha para o lado. Percebem? Algo do inefável... Algo da ordem do... (TENTA ACHAR A PALAVRA)... sem palavras... (SUSPENSE) O que ela vê? (RESPOSTA AMBÍGUA) Ela. (CONFIRMANDO) Ela. (CONVICTA.) Ela. Ela se vê. (INTRIGADA E NUM TOM INVESTIGAÇÃO E ALGO INCRÉDULA) Mas não ela com trinta anos arquiteta, separada, três ex-maridos, dois filhos. Ela com nove anos. Não, não, melhor... Ela se reconhece com dez. Dez anos. O cabelinho curto. Vestidinho floriado, tênis branco... Ela se reconhece porque quando fez dez, 15 de fevereiro, aquariana ascendente em aquário, ela ganhou um carrinho. E ela puxava este carrinho para todos os lugares que ia. Era um carrinho de quatro rodas, puxado por uma cordinha e neste carrinho ela carregava (GESTO DE AMPLIDÃO) o mundo. Ou seja, uma bola, um boneca sem a perna esquerda, um bastão, roupas coloridas, um chapéu de palhaço, uma bolinha vermelha, três bolas de tênis, um raquete... Além disso, no domingo passado, dia dez de fevereiro, ela caiu duma árvore, quebrou o braço e por isso estava com gesso. O braço que puxava o carrinho era o braço engessado o que fazia com que o carrinho fosse puxado por um braço que não se estendia o que soava mais ou menos assim. (MOSTRA). Maria Eduarda, a arquiteta viu a Maria Eduarda, a Duda. Era assim que era chamada quando era criança. Duda. Nome de guri. Guri é mesma coisa que garoto. Como já falei minha família é do Sul, Alto Uruguai, pêlo-duro... Este Duda era uma guria com nome de guri ou, traduzindo, garota com nome de garoto. Vocês imaginaram se um dia vocês estivessem na rua e vissem a vocês mesmos como crianças? O que aquele menino ou menina, aquele guri ou guria, aquele garoto ou garota estaria pensado de vocês? É uma poesia de Mário Quintana que diz alguma coisa assim. “Encontro uma foto minha de quando tinha seis anos. Pausa. O que será que aquele menino está pensando de mim? Mais ou menos isso que está acontecendo. O olhar da garota com apelido de garoto, olhou para Maria Eduarda que não era mais Duda. E o mundo se transformou.

(MÚSICA E EFEITOS DE LUZ, COMO SE COMEÇASSE UM GRANDE SHOW DE PIROTÉCNIA, MAS NADA ACONTECE. ATRIZ SE COLOCA NO LUGAR DE MARIA EDUARDA E OLHA PARA DUDA. DEPOIS SE COLOCA NO LUGAR DE DUDA E OLHA PARA MARIA EDUARDA. ATRIZ SAI E FICA NO MEIO DAS DUAS.)

Prestem bem atenção neste olhar. Não é um olhar qualquer. Maria Eduarda vê o seu passado, a história de sua vida. Um raio que atravessa o tempo, rompe a lógica e coloca olho no olho. Um lábio colado no espelho. Ai!

(VEM A DOR ELA SE CONTRAI, DEPOIS CESSA A CONTRAÇÃO E ELA SE COLOCA NO LUGAR DE UMA E DEPOIS NO DA OUTRA.)

E Duda, que Duda vê? Duda vê o futuro. Uma memória de um futuro! Ali na sua frente vê a mulher que ela será. Enquanto Maria Eduarda vê a menina que ela foi. Como traduzir este momento? Uma poesia... Uma poesia de Manuel Bandeira:

“Vi terras da minha terra
Por outras terras andei
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado
Foram as terras que inventei”

Maria Eduarda cai em si e fala: Meu Deus o que eu fiz da minha vida? Entenderam? Vou repetir: Meu Deus o que eu fiz da minha vida? E a memória indiferente de Duda brinca num canto do ser, toma vida, se move. Fazemos uma força para congelar a vida. E no entanto, querido Galileu, ela se move.

(INCORPORA DUDA, VESTE ALGUMA COISA DE FIGURINO QUE MARCA A PERSONAGEM E COMEÇA A ATUAR COMO A CRIANÇA)

Mamãe posso ir? Quantos passos? Um, dois, três... (OLHA PARA OS LADOS. NOVAS CONTRAÇÕES, DORES DO PARTO.) Cadê todo o mundo? (CESSA A DOR, COMO CRIANÇA.) Cadê todo o mundo? Eu odeio sexta-feira! Não todas sextas-feiras, mas esta sexta-feira porque hoje, sexta-feira, já me mandaram embora de tudo que é lugar. Em casa não posso ficar porque... (IMITANDO A MÃE) Duda quero você fora de casa que hoje é dia da faxina! E você só incomoda. (TRABALHO DE PARTO.) Ai a dor de novo, quantas contrações por minuto? Só? Parece que é muito mais! Respiração cachorrinho! (RESPIRA E NOVAMENTE CESSA A DOR, COMO DUDA.) Eu incomodando? Quem incomoda é a Rosilene, a faxineira. Ela é nordestina. (IMITA.) Duda sai do quarto, Duda sai da sala, Duda sai do banheiro... (DUDA.) Pô nem fazer xixi em paz eu consigo! O que eu fiz? Fui pro colégio. A Gertrudes falou... Gertrudes é diretora... (IMITA.) Crianças, hoje não vai ter aula porque o colégio foi detetizado. (DUDA.) Puxa, porque não detetizaram sábado? É preguiça para não dar aula. Só pode! Mas está parte até que eu gostei. Melhor coisa do mundo é quando a gente vai para o colégio e não tem aula! Então eu vim para o play. Só que... Cadê o pessoal? (DOR DO PARTO, ELA GRITA.) Cadê todo o mundo? Minha mãe porque me abandonaste? (A DOR PASSA. SUBITAMENTE ALEGRE.) Olha lá vem chegando o Jorjão. Ele é o manda-chuva da turma. (INTERPRETA O JORJÃO) Ele é esperto, gosta de assustar os amiguinhos e mente pra dedéu. (NARRANDO.) Quando ele crescer vai trabalhar no Banco do Brasil. (VOLTA A SER JORJÃO, AGORA ADULTO SUBMETIDO AO CHEFE, FAZENDO ALGUMA CENA EM QUE ELE SÓ RESPONDE “SIM SENHOR”.) Mas enquanto isso... (RETOMA O JORJÃO DECIDIDO.) O Jorjão vai até o balanço, nem olha para mim... passa como se eu não existisse... (AÇÃO.) Isso é normal para ele porque ele age com todo o mundo como se ninguém existisse. (INTERPRETA O JORJÃO PASSANDO POR DUDA. FALANDO COMO JORJÃO RESPONDENDO A DUDA.) Não acreditem no que ela diz. Mulheres! Sempre acham que os homens são uns idiotas. (MUDA RAPIDAMENTE PARA DUDA.) E eles são! (VOLTA A SER O JORJÃO SÓ QUE AGORA NUM LADO ÍNTIMO E DELICADO DELE.) Eu sou tímido. Grito, xingo, vai te fuder, e o escambaú, porque eu tenho medo. Finjo que não vejo a Duda porque eu acho ela bonita. Tem um jeito meio moleque, mas é isso que eu gosto nela. E se eu gosto de alguém aí mesmo é que eu sou mau com esta pessoa! E aí mesmo que eu dou porrada. Porrada! (PÕE FOGO NUM PEDAÇO DE MADEIRA E AMEAÇA DUDA QUE GRITA. VOLTA A NARRAÇÃO PARA DUDA.) Coitado, se continuar assim, quando for adulto vai freqüentar sessões de sadomasoquismo! (ENTUSIASMADA.) Aí chega a Margarida. Ela é linda! Tem o cabelo liso e comprido. Gosta de se vestir com roupas novas. Não se suja nunca. (FAZ A MARGARIDA.) Ai, guri tira este fogo de cima de mim! Não joga areia, seu chato. Oi Duda. (DUDA.) Oi. (MARGARIDA.) Vamos brincar, mas não posso me sujar porque o meu vestido é novo. Gostou do meu vestido? (DUDA, INVEJA.) Gostei. (MARGARIDA.) Eu gosto porque é da rendinha. E também tem este babado. E também... (DUDA, MUDANDO O FOCO.) Ainda bem que chegaram os gêmeos. Oi pessoal! Pois é, tem ainda os gêmeos: Rômulo e Remo. Um fala pelos cotovelos e o outro não fala nada. Só dá risada, o tempo todo dando risadas! Um falando e o outro rindo! (FAZ OS GÊMEOS.) E a minha amiga preferida a Suzie. É com ela que eu tenho minhas confidências, com ela que é converso quando não estou bem. (PARA A AMIGA.) Suzie. Que bom que você veio. (SUZIE.) Eu adoro sexta-feira porque lá em casa estão fazendo a faxina e só assim eu posso sair de casa sozinha! E por último, o Pinduca. (SUBITAMENTE RETORNAM AS CONTRAÇÕES.) Ai, está vindo, quantas contrações? Só três. (DORES DO PARTO.) O que eu faço, doutor? (DESAPONTADA.) Voltar amanhã? (PASSA A DOR.) Não falei nada ainda do Pinduca. Ele é o mais popular. O nome dele é Pedro. Tem um astral ótimo. Todo o mundo gosta dele, todo o mundo se preocupa, ele tem tudo o que quer, comida, carinho, tem tudo. Ele também tem uma lesão cerebral. Anda na cadeira de rodas. As pessoas gostam dele pelo astral dele, mas também porque ele é doente. É mais fácil odiar quem é normal. Mas ele tem uma coisa especial. Os médicos dizem que ele não ouve que ele não faz nada nem nunca vai fazer. Pode até ser verdade, mas quando a gente olha no olho dele... A gente sente alguma coisa... Sem palavras... ele vem com a a babá dele, a Creuza. Ela é passista da Mangueira. Dá um dedo por um pagode. E o resto depois da primeira cerveja. (FAZ A CREUZA, UMA PUTONA. AQUI PODE CANTAR E SAMBAR. JORJÃO SE APROXIMA.) Pessoal vamos brincar? (MARGARIDA PENTEANDO UMA BONECA.) Brincar de quê? (RÔMULO COM UMA BOLA.) Prefiro jogar futebol? (REMO RI. SUZIE FAZENDO UM COMPLÔ.) Não vou brincar com os garotos. Você vai Duda? (JORJÃO INSISTINDO.) Brinca comigo, Duda. (RÔMULO.) Vamos bater uma bolinha. (MARGARIDA.) Brincar de boneca. (DUDA FICA DIVIDIDA.) Eu não sei... (JORJÃO.) Vamos brincar senão vou dar porrada. (MARGARIDA.)Não pisa no meu babado! (PRIMEIRO GÊMEO.) Vou cuspir no teu copo. (OUTRO GÊMEO RI. DUDA.) Vamos brincar de roda? (JORJÃO.) Vou te beijar. (VAI ATÉ DUDA E LHE BEIJA. ELA DÁ UM TAPA NA CARA DELE. ELE CHORA. DUDA FICA CONFUSA - MOSTRAR A REAÇÃO DE CADA UM - ATÉ QUE ELA DECIDA FALAR COM SUZIE.) Vou brincar com você. O que você quer fazer?

(ESPAÇO PARA JOGOS INFANTIS. A DESENVOLVER. NO FINAL DA CENA DUDA FALA.)

Suzie, hoje é caixa do Banco do Brasil, Rômulo foi preso traficando cocaína no Morro do Juramento. Margarida casou com um advogado, foi morar no interior de Santa Catarina e nunca mais se ouvi falar dela. Remo é alto executivo de uma Sansug, fala japonês fluentemente tem um filho internado numa clínica psiquiátrica, Jorjão morreu de AIDS no ano passado.

(CONTRAÇÕES VIOLENTAS.)

Ai, doutor, não passa de hoje. Olha só a minha barriga! Ai, e hoje a meia noite muda a lua. Doutor, está correndo um rio de dentro de mim!

(PLANO PARA A SEQÜÊNCIA: OS AMIGOS ERAM INVISÍVEIS. O ÚNICO QUE VA DE FATO NA PRACINHA É O PINDUCA. E NO FINAL É O OLHAR DO PINDUCA QUE ELA, A ARQUITETA, VÊ.)

O dia da briga de turma. Este dia ninguém da rua esqueceu. Não acredito que alguém que viveu aquilo possa passar um dia sem lembrar o episódio. Eram duas turmas. O pessoal do colégio tinha ido lá me casa. E apareceu a Turma da Rua de Cima! O pessoal do colégio era gente sofisticada, famílias classe média metida a classe alta. A Lulu tinha anel imenso na mão. Sempre que ela falava mexia aquele dedo como uma cobra fugitiva! O Marquinho... não sei como era de fato Marquinho porque de pequeno não tinha nada, mas o que mais se destacava nele era a bunda. Tinha um bundão fantástico. E a Marlene. Está era uma boneca. Sempre piscando os olhos fazendo boquinha! Imaginem: Lulu (MEXE O DEDO COM O ANEL), a Marlene (PISCA OS OLHOS E FAZ BOQUINHA) e o Marquinho (VIRA DE COSTAS E MOSTRA O BUNDÃO) brincando na praça. (ALGUM PAPINHO PARA A BRINCADEIRA ROLAR)
Aí chegou a Turma da Rua de Cima. O Hermeto era um pretinho mal humorado! Sempre que ele falava levantava o ombro esquerdo e a mão preta vinha com um dedo em riste. (COLOCA UMA LUVA PRETA NA MÃO ESQUERDA). O Fábio era o mais chato. Caminhava com os joelhos para dentro e batia o pé esquerdo batia no chão que ele queria falar alguma coisa importante. E o Jacaré que era magrão comprido que ficava inticando com todo o mundo. Tinha uns lábios assim.
Eles começaram briga.

(AQUI TEM QUE CRIAR UMA BRIGA ONDE CADA PARTE DO CORPO É UM PERSONAGEM E DIALOGA COM TODOS OS OUTROS.)

Esses eram meus amigos. Eu namorei o Fábio, transei com o Jacaré, fiquei amiga do Hermeto. O Marquinho foi meu amante, a Marly transou com o meu primeiro marido e a Lulu com o segundo. Depois, já na faculdade, conheci o Antônio que foi o meu primeiro marido, o que transou com a Marlene, depois conheci o Tony que foi o segundo, que transou com a Lulu e o Toninho foi o terceiro que não transava nem comigo. Acho que tenho uma queda por Antônio. Com um deles eu tive um filho.

(CONTRAÇÕES DE PARTO.)

Ai a dor. Doutor é muita contração. Chama o anestesista, pelo amor de Deus, alguém tira essa dor de mim. Uma alma caridosa, pelo amor de Deus, tira esta dor do meu corpo! Ai, vai nascer. Me leva para a sala de parto, pelo amor de Deus. Sala de parto pelo amor de Deus.

(BARULHO DE MACA, MOVIMENTOS DE LUZ. PÁRA TUDO E MARIA EDUARDA FALA NUM TOM CONFESSIONAL.)

Tem noites que olho para o Pindo e fico imaginado a matéria no minuto da criação, no exato segundo que vira pensamento, quando a matéria vira sonho, quando a célula nutrida transcende o sangue e virá mente. Foi numa tarde preguiçosa, um verão de Porto Alegre, o paralelo 30 se combinou com a lua em Áries e conjugamos o verbo no imperfeito. Caminhamos, eu e ele, pela praça entre a penumbra das árvores. O parque se oferecia abstruso enquanto a lua cheia dourava nossos sonhos. Éramos belos e saudáveis. Enquanto isso, ele o fatível, se desenhava. Pense no silêncio da pedra, na inércia da célula, o limiar da possibilidade antes do tudo. Depois da caminhada, nós quase deitados no chão da sala, frente o fulgor da janela noturna, antes de tudo existia já o nada, um sangue provável, um sêmen inconseqüente, pedaço de água lunar jorrado, inseminado dentro de outro corpo, da pêra uterina, vermelha e madura. Lá de dentro daquele universo de plasmas, líquidos suculentos, bem no centro do miasma milenar, o ovo começa a pensar. Percebe o arfar vindo de fora, espasmos, a penetração regular os vagidos úmidos de um mundo em êxtase. A célula, ainda pedra, estática aguarda o encontro, o momento convulsivo em que a larva do vulcão arromba o crosta e deságua num mundo de incertezas. O primeiro segundo em que a pedra ganha vida, o sopro de Deus, o dedo de Adão que da Vinci pintou na Capela Cistina, o momento do indizível. Átimo inaugural. Ali ele - eu passei a ser, embora nunca venha a expressar dessa forma, mas ele - eu comecei, como pedra sou, pedra serei, percebo o que todos esquecem. O arfar diminuindo, um calor que arrefece e um baque, um corpo que se afasta de outro, mas já não são mais dois, eu existo, e para sempre existirei, célula pétrea, semáforo de destinos. Aconchegado na umidade de Deus Pai Nosso Senhor, e no manto da santa, virei carne, sangue percorreu o embrião de mim mesmo, circonvulso, me desdobrei em membranas e folhetos que se diferenciaram sem perder nunca o caráter de granito, o calhau frio do pedregulho, sem deixar para trás minha origem. No sétimo dia aconteceu um problema, Deus descansou. Foi um instante de desatenção divina. E neste dia uma pequena membrana que deveria recobrir o cérebro não cumpriu seu papel, como um ator que esquece a fala, o delicado retículo não se dobrou sobre si e deixou exposto uma massa de neurônio assustados e sem liderança onde o som e silêncio se indiferenciaram, a luz não se separou das trevas, nem o caldo primordial gerou o coacervado, onde a pedra não virou carne. Um momento demoníaco e mágico, eu me imagino ali no teu lugar, sempre ali, num mundo transiente, num mundo volátil e tu ali pedra e pedro e sobre ti construi a minha igreja, pedro missioneiro, pequeno deus errante, pedaço de uma canção inacabada. Canto teu elemento singular e monótono.

(DOR DE PARTO.)

Ai. Vai nascer. Completou a dilatação. Porque ele não desce! Nasce meu bebe, sai de mim, sai de dentro de mim, pode nascer, estou soltando a tua mão, estou te dando para o mundo, passamos estes meses no nosso diálogo, na nossa exclusividade e chegou a hora de eu te dar para o mundo. Vem meu anjo, vem meu sonho, vem meu desejo, vem meu nome, vem... Ai!

(CONFESSIONAL.)

Uma noite, quando o trágico se desenhava na carne sem que soubéssemos, pequeno bebê em seu leito de agitação trafegava em seus dias inaugurais, eu acordei chorando. Um choro convulso, sem saída, não podia estar acontecendo o que acontecia. Não podia aquela criatura fruto de duas pessoas saudáveis e belas, realização de um sonho, tornar-se fruta sem futuro. Incrédulo chorava. Eram tempos em que o amor deslizava pelos países eróticos, em que cada toque era uma erupção de líquidos. Um simples beijo provocava deságües e ereções. O olhar era pleno de ternura e acalentava as manhãs de sol no Menino Deus que Caetano cantou. Eu convulso, não suportei e o choro é meu presente, meu passado e meu futuro. Inadmissível, um tempo estanque que me devolve sistematicamente, como um processo científico, para o mesmo lugar, um ridículo círculo perfeito. Estanquei no momento e chorei para nunca mais parar de chorar. Quem olha para mim não vê as lágrimas, não vê os soluços, não vê o desespero, mas ele está sempre presente, parceiro oculto, a morte amiga, sempre na espreita, sempre alerta, uma sombra que me acompanha. Sou um mar de lágrimas secas, evaporadas pelo tempo, pelo calor e pelas convenções. Quem olha assim não vê a dor, uso capião, a dor, interstício, a dor, febre sem temperatura, a dor, fome insaciável, a dor, morte lenta. A dor, a dor, a dor. Ai! Ai! Ai! (GRITA DESESPERADA DE DOR.)

(SÓBRIA E MASCULINA.)

Agora sou ele. O pai, o que foge. O São José de Botticelli, um São José triste, figura decorativa, menos importante do que o burrico ou a vaca neste simulacro de presépio. O que observa os olhares da mãe para o filho e do filho para a mãe. Aquele que inveja a ternura do encontro sem nome. Que baixa os olhos frente ao milagre, ele é aquele que não vê. Resignado, mas eu mãe aqui estou e aqui vi. O olho que atravessa o tempo.

(EMOCIONADA.)

E se aqui vim, aqui cheguei de um trajeto mórbido e cheio de vida, aqui fiquei para esta história contar.

(PAUSA)

Lembram que eu falei que tinha dois filhos? Aquilo não era importante. Lembra que eu ia repetir o gesto dela antes do final? Aquilo era importante porque é marca da passagem. Pois chegou a hora.

(REPETE O GESTO, VÊ O PEDRO. PÁRA. SALTA DO TAPETE. GRITA DE DOR NUMA CONVULSÃO E PASSA.)

Pronto agora não sou mais ninguém. Vocês viram e vêem e agora eu conto que Maria Eduarda, arquiteta, liberal, separada e descolada, reencontrou Duda, menina dos sonhos, a três passos do paraíso e em Duda, encontra o olhar de Pedro. E em Pedro vê... (NOVAMENTE NÃO ACHA A PALAVRA PARA DEFINIR.) Tudo se transformando, a vida até ali sem sentido, um mundo de coisas obsoletas, perfumarias, revoluções silicônicas, liquidificar de emoções, mas na essência, o nada. Pessoas nascendo e morrendo sem nome sem afeto, as tragédias indiferentes, os afogamentos narcísicos, assassinatos dos vínculos, os prédios que desabam, crianças roubadas, adolescentes esmagados em ferragens, tiros na nuca, tortura, roubo e traição e tudo de repente toma outra tonalidade. Outro sentido, tudo muda, tudo vale um beijo tudo se transcende. Mas ele, ele, sempre ele, com aquele olhar, olhar, que olhar, um olhar... “sem palavras”... apenas o olho que vê. A senda sombra sonora do disco voador. Olhos que enxergam tudo e tudo se transforma, menos o olhar, menos ele. A vida se move mas não ali. A vida de Duda foi em mil direções. Morreu e ressuscitou milhares de vezes e ali, no olho de Pinduca, revia a vida. Como é que pode uma pessoa ter um destino pétreo? Que sina é essa da eterna mesmice? Como é suportável algo não nunca jamais muda? E no entanto o seu olhar muda a vida de quem ele olha. E no entanto, pequeno Galileu, o bebê Mozart, o que será Da Vinci, o futuro Botticelli, o adorável Caetano e o sempre pequeno Pedro, Pedro de todos os Pedros, Pedro dos meus sonhos, pequeno eu de mim mesmo, a vida, ela se move.

(UM ABRAÇO NO AR, COMO SE TOCASSE EM ALGO QUE NUNCA SE PODE TOCAR. UMA SUBSTÂNCIA DO ESPAÇO. MÚSICA NEW AGE, VOLÁTIL E GRANDIOSA. ELA DANÇA COM A SUBSTÂNCIA. ALCANÇA UM APOGEU, UM ÊXTASE E A MÚSICA, O MOVIMENTO, TUDO PÁRA COMO SE UMA AVE QUE DESPENCASSE DO CÉU. UM CORPO BATENDO DE IMPACTO AO CHÃO. ELA ASSOPRA O AR E DESPEJA DE DENTRO DE SI TODOS OS PERSONAGENS.)

Agora posso falar diretamente com vocês e esta parte vou falar com um pé dentro outro fora. Porque neste momento as histórias se fecham e os personagens convergem. Eu, Maria do Carmo, contei a história de Maria Eduarda, de Duda e de tanta gente. Eu apenas uma atriz “pelo-duro”. Vocês podem perguntar como é que eu sei de tudo isso? E agora é a minha vez de confidenciar a vocês que talvez eu seja a Maria Eduarda, talvez eu seja a Suzana, talvez eu seja o Pedro, talvez eu seja o Jorge e talvez eu seja a Maria. Talvez eu seja todos eles e talvez vocês sejam eu.

(ÚLTIMO E LONGO SUSPIRO, UM SOPRO DE AR, SIBILADO E COM ALÍVIO.)

Nasceu.

(ELA SE MOVE E PARECE QUE O GESSO AINDA ESTÁ EM SEU BRAÇO, COMO CARINHO, ELA EXAMINA O GESSO E O FAZ SUMIR NO AR, FINALMENTE, LIBERTA. UMA MENINA PUXA UM CARRINHO DE BRINQUEDO ENQUANTO UM MENINO DESLIZA NUMA CADEIRA DE RODAS, MARIA EDUARDA NO CENTRO DO PALCO, DO BURACO, DO PLAY, VÊ UM CÉU AZUL E ESTENDE O BRAÇO RECÉM LIBERTO. EXPERIMENTA OS MOVIMENTOS COM UMA LIBERDADE QUE NUNCA VIVERA.)

Comentários

Elisa Lucas disse…
EU QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO!
EU QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO!

EU QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO!


EU QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO!


EU QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO!


EU QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO!


EU QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO!


EU QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO!


EU QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO!


EU QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO!


EU QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO QUERO!

QUERO SER A DUDA!
QUANDO ONDE COMO?
Anônimo disse…
Olá, vim visitar seu blog e me tornar mais uma seguidora.
Estou começando a minha carreira artistica e também tenho um blog, se puder, dá uma forcinha lá!!

www.aventuradeviverdearte.blogspot.com

Beijos e sucesso para você.

Postagens mais visitadas