Prendi o ar e mergulhei - outra peça de Julio Conte

PRENDI O AR E... MERGULHEI

Júlio Conte
PERSONAGENS:


IZMÁLIA, irmã mais moça.
ISMÊNIA, irmã mais velha.
ANSELMO, atual marido de Ismênia.

CENA 1
(NUM AMBIENTE CREPUSCULAR DUAS MULHERES. UMA SEMIDEITADA. NÃO SE PERCEBE AINDA MAIS VAMOS DESCOBRIR LOGO QUE ELA ESTÁ NUM QUARTO DE HOSPITAL. NOUTRO LADO DA CENA, UMA POLTRONA, OUTRA MULHER, COM UMA CARTA NA MÃO. ENTRE AS DUAS UM HOMEM QUE NÃO ESTÁ ILUMINADO, É UMA SOMBRA QUE SERVE DE REFERÊNCIA, AO MESMO TEMPO EM QUE SEPARA AS CENAS, AS UNE.)

ISMÊNIA
Ela veio? (TEMPO DE RESPOSTA DO HOMEM. NÃO SE ESCUTA, APENAS A SILHUETA SE MOVE.) Ainda não? (MESMO JOGO.) Mas ela vem. É certo que ela vem. Não sei se estarei aqui quando ela chegar.

(NO OUTRO LADO DA CENA.)

IZMÁLIA
Pra que tudo isso? (TEMPO DE RESPOSTA DO HOMEM. NÃO SE ESCUTA, QUE AGORA TORNA PARA A OUTRA CENA. APENAS A SILHUETA SE MOVE.) O que ela quer de mim? (MESMO JOGO.) Não foi isso que a gente combinou.

(SILÊNCIO. MOVIMENTO DE LUZ COMEÇA A DESENHAR A CENA.)

CENA 2

(IZMÁLIA COMEÇA A ARRUMAR UMA PEQUENA MALA. ISMÊNIA COMEÇA ARRUMAR O AMBIENTE EM VOLTA DA SUA CAMA.)

ISMÊNIA
Será que ela vai me perdoar?

IZMÁLIA
Será que é possível esquecer?

ISMÊNIA
Quando uma mulher é traída, dentro de casa...

IZMÁLIA
Com a própria irmã... Traída...

ISMÊNIA, maquiando-se.
Fui traída...

IZMÁLIA, maquiando-se
Ela teve todas a chances de cair fora.

ISMÊNIA
Ela podia ter mudado todo o destino.

IZMÁLIA
Sabia que algo puxava para o abismo, mesmo assim ela foi até o fim...

IZMÁLIA
Não se pode abraçar o demônio e depois dizer para ele ir embora, assim, “obrigado pelos seus serviços”.

ISMÊNIA
Ela pensa que eu me dei bem, mas eu inventei o inferno.

IZMÁLIA
Diabos, o que mais ela quer de mim?

(AS DUAS TERMINAM DE SE MAQUIAR. PARAM UMA FRENTE À OUTRA.)

CENA 3
(O HOMEM SURGE ENTRE ELAS, AGORA É UM MÉDICO. IZMÁLIA RECUA, SE AFASTA PARA ELES CONVERSAREM, OBSERVA DE LONGE. ISMÊNIA OBSERVA MAIS IZMÁLIA DO QUE DÁ ATENÇÃO AO MÉDICO, APESAR DE TUDO QUE ELE ESTARÁ FALANDO,)

MÉDICO
Tenho que dizer a verdade. O seu caso é muito grave. O prognóstico é reservado.

ISMÊNIA
Quanto tempo de vida?

MÉDICO
Vai depender.

ISMÊNIA
Do quê? De como vou reagir à quimioterapia? Do que tem de vida dentro de mim.

MÉDICO
Muitas coisas. Medicina não é uma ciência tão exata como às vezes sonha nossa vã filosofia.

ISMÊNIA
Até o verão?

MÉDICO
Primavera, verão, outono, inverno, quem controla estes ciclos? Se tudo correr bem.... (PARA A IRMÃ.) Você deve ser a Izmália.

(COMPRIMENTA O MÉDICO.)

ISMÊNIA, irônica.
E eu sou a Ismênia.

MÉDICO
Você escutou o que falamos?

IZMÁLIA
Como não escutaria? Parecia que era comigo que falavam

MÉDICO
Vou deixa-la a sós. Vocês devem ter muito para conversar.

IZMÁLIA
Doze anos. Quanto tempo precisa para colocar doze anos em dia?

ISMÊNIA
Uma vida.

MÉDICO
Com licença.

IZMÁLIA
Como vais?

ISMÊNIA
Sonhei esta noite. Contigo. Estava na Idade de Pedra.

CENA 4 – O SONHO

(MÚSICA. ISMÊNIA SE TRANSFORMA NUMA MULHER MACACA IZMÁLIA APARECE TAMBÉM. ELAS SE EMFRENTAM. UMA DÁ UM COM O TACAPE E DERRUBA A MULHER. A VITORIOSA APANHA UM HOMEM QUE ENCONTRA-SE PROSTRADO. ELA TENTA CARREGA-LO, MAS NÃO CONSEGUE. A OUTRA MULHER ACORDA. DÁ UMA PORRADA NA CABEÇA DA PRIMEIRA E TENTA PEGAR O HOMEM. ESTE COMEÇA A RECUPERAR AS FORÇAS. O HOMEM PEGA AS DUAS, COM VIGOR, FAZ COM QUE PAREM DE BRIGAR.)

ANSELMO
Chega! Vamos combinar. Tu é a mulher.

IZMÁLIA
Eu sou a mulher. Viu!

ANSELMO
E tu é a amante.

ISMÊNIA
Ele me ama mais do que a ti.

IZMÁLIA
Mas ele vive comigo. Ele paga as minhas contas. Compra os meus sapatos.

ISMÊNIA
Mas ele apaga meus fogos. Beija os meus pés.

ANSELMO
Calma, gurias, eu sou homem suficiente para as duas.

(AS DUAS OLHAM PARA O HOMEM.)

ELAS
Teu peito!

ISMÊNIA, surpresa.
Nós estamos brigando por causa disso?

IZMÁLIA, examinando o homem.
Olhando assim de perto a gente vê que não vale a pena.

ISMÊNIA
Será que vamos passar por toda nossa fêmea existência brigando por causa de um espécime destes.

IZMÁLIA
Um sujeito egoísta.

ISMÊNIA
Um cara vaidoso.

IZMÁLIA
Só pensa nele. Egoísta!

ISMÊNIA
Exibicionista. Prepotente!

IZMÁLIA
Só porque ele tem...

ISMÊNIA
Uma... coisinha.

IZMÁLIA
É! O que vale uma coisinha?

ISMÊNIA
É. O que vale? Uma coisinha...

(SUSPENSE.)

AS DUAS
Vamos sim!

(VOLTA AO PRESENTE. HOSPITAL.)

ISMÊNIA
E aí a gente começava brigar e....

IZMÁLIA
Não parava nunca mais. Desperdício de energia.

(ISMÊNIA NA CAMA. MÚSICA DE TRANSIÇÃO.)

CENA 5

(QUARTO DE HOSPITAL. IZMÁLIA ABRE UMA JANELA E ENTRA UMA LUZ AMARELADA QUE ILUMINA AS DUAS, COMO SE FOSSE UM ENTARDECER.)

ISMÊNIA
Você emagreceu. Está mais bonita. Como você sempre foi bonita.

IZMÁLIA
Isso nunca me ajudou nada na vida.

ISMÊNIA
Porque você não quis. Orgulhosa. A beleza tem um poder devastador.

IZMÁLIA
Mas passa. É um valor que passa.

ISMÊNIA
Mas não em você. Meu Deus como uma pessoa pode permanecer bonita. O que faz uma mulher permanecer tão bonita tanto tempo?

IZMÁLIA
O ódio.

ISMÊNIA
Ódio é um sentimento que corrói o sujeito. Mata a vida que tem dentro dele. Se fosse o ódio você teria morrido.

IZMÁLIA
O que mata é a culpa. Por causa da culpa eu teria um câncer, por isso prefiro o ódio a culpa.

ISMÊNIA
Suponha que a culpa então é uso capião meu, não é? Você sabe ser cruel quando quer.

ISMÁLIA
Desculpe. Coisas acontecem comigo que não tem controle quando estou perto de você. Afinal o que você quer comigo?

ISMÊNIA
Falar. Falar sobre este filme que não pára de passar na minha mente.

(IZMÁLIA OFERECE UM COPO DE ÁGUA PARA ISMÊNIA. ESTA BEBE E IZMÁLIA TAMBÉM. AS DUAS TOMAM UM GRANDE GOLE DE ÁGUA.)
CENA 6

(DE REPENTE, COMO SE ESTIVESSEM COMPETINDO PARA VER QUEM BEBE MAIS E MAIS RÁPIDO, ENCHEM A BOCA COM ÁGUA. OLHAM UMA PARA A OUTRA E AO MESMO TEMPO, COSPEM TUDO FAZENDO UM CHAFARIZ COM A BOCA. ELAS SE TRANSFORMAM EM DUAS MENINAS.)

ISMÊNIA
Batizado.

IZMÁLIA
Em nome do pai, do filho do Espírito Santo e do amor entre as irmãs, amém.

ISMÊNIA
Aqui fica enterrado teu umbigo.

IZMÁLIA
E o teu aqui.

ISMÊNIA
Assim nós vamos estar sempre ligadas,

IZMÁLIA
Assim, nós nunca vamos ficar longe uma da outra.

ISMÊNIA
E se eu cortasse o cabelo da tua boneca?

IZMÁLIA
Eu te perdoava. Se comesse chocolate e não dividisse contigo

ISMÊNIA
Eu te perdoava. Roubasse tua coleção de revista em quadrinho?

IZMÁLIA
Eu te perdoava. Se eu ganhasse um anel de brilhantes que era teu?

ISMÊNIA
Eu te perdoava. Se roubasse as tuas maquiagens?

IZMÁLIA
Eu te perdoava. Se eu contasse para a mãe da tua nota em Matemática?

ISMÊNIA
Eu te perdoava. E se eu roubasse teu namorado?

(SILÊNCIO. DE REPENTE EXPLODEM EM RISOS. GARGALHADAS E MAIS GARGALHADAS.)

CENA 7
(VOLTAM AO QUARTO. IZMÁLIA OLHA COM CARINHO PARA ISMÊNIA. SORRI.)

ISMÊNIA
Tu fica bem rindo. Como é bom ter ver rindo.

IZMÁLIA
A gente ri por fora. Isso é fácil. Não agüento mais meu terrorismo interior.

ISMÊNIA
Rebelde sem causa.

IZMÁLIA
Causa é o que não me falta para ser rebelde.

ISMÊNIA
Pára de ter pena de ti mesma. Tu já é uma mulher.

IZMÁLIA
E você ainda é uma menina que já foi mulher quando era menina.

ISMÊNIA
Oh, essa foi profunda! Você era delicada demais, sofria de dramas a cada mudança de ventos. Meu Deus, como você era instável! Inconstante!

IZMÁLIA
E você sempre fortaleza, sempre constante, sempre sempre. A mesma em qualquer circunstância.

ISMÊNIA
Se você vivesse cinco minutos dentro da minha mente, poderia ter a noção do que estou falando. Saberia de fato o que é terrorismo interior.

IZMÁLIA
E se você vivesse uma vida dentro de minha mente, nem assim teria noção do eu estou sentindo. Saberia de fato o que é inconstância.

ISMÊNIA
Por isso te chamei aqui.

IZMÁLIA
Para me dar um pequeno alívio...

ISMÊNIA
Para te poupar de mais sofrer.

IZMÁLIA
Não estou sofrendo. Já passei desta fase. Sofrimento já era, eu não sinto mais nada. Só um ressentimento que começa as seis da manhã até as onze da noite, de março a fevereiro, ano sim e ano também.

ISMÊNIA
Você reclama, mas ainda pode contar o tempo... Olha só esta noite.

(AS DUAS OLHAM PARA FORA DA JANELA. MUDANÇA DE LUZ.)

Cena 8
(CONFORME A LUZ MUDA O CLIMA EMOCIONAL DA CENA, TEMOS UMA MUDANÇA DE IDADE DAS PERSONAGENS. O QUARTO SE TRANSFORMA, ELAS SÃO ADOLESCENTES. ESTÃO NUM LUAU NUMA BEIRA DE PRAIA.)

ISMÊNIA
Olha só esta noite. Isso não podia acontecer.

IZMÁLIA
O que tem? Olha só esta noite.

ISMÊNIA
Eu não disse que ia ser legal.

IZMÁLIA
Não ia ser legal? Tu viu os braços do Rodrigão?

ISMÊNIA
Surfista. Todo surfista é assim.

IZMÁLIA
E aquela costas? Tu viu o tamanho daquelas costas.

ISMÊNIA
É para te abraçar melhor.

IZMÁLIA
E aquelas pernas!

ISMÊNIA
São para te carregar para mais longe.

IZMÁLIA
E o quadril.

ISMÊNIA
É para.... deixa para lá.

ISMÊNIA
Melhor...

IZMÁLIA
Disfarça que eles estão voltando.

ISMÊNIA
Demoraram, heim? Izmália, dá um tempinho aí que eu preciso fazer uma coisinha. Já volto.

IZMÁLIA
Não demora.

ISMÊNIA
Já volto.

(ISMÊNIA SAI. ENTRA O CARA.)

CENA 9

(CENA ESTANCA. VOLTA PARA O PRESENTE. O CARA FICA ALI NO LADO, PRESENTE E ESTÁTICO.)

IZMÁLIA
Mas você demorou. Demorou a noite toda.

ISMÊNIA
Ele era lindo, a noite estava iluminada por uma lua sobre a lagoa. Aquele silêncio do mato, o cheiro do mato, e nós ali, bichos do mato.

IZMÁLIA
E eu morrendo de medo do mato!

ISMÊNIA
Nem acredito.

IZMÁLIA, o cara realiza as ações do texto sem que ela pare a narrativa.
O cara era um bronco. Não me disse uma palavra. Não perguntou o meu nome, nada. Foi se aproximando. Eu senti o hálito dele, era bom, tinha um gostinho de alecrim seus lábios. E isso me acalmou, relaxei, um beijo relaxante, então eu me deixei levar. Parecia que eu flutuava. Era muito bom, o mato, o alecrim, os lábios. Mas de repente, um vento estranho, senti que ele começou acordar alguma coisa dentro dele. Suas pele tão macia se tornou áspera, suas mãos tão delicadas começaram a me apertar, e suas unhas, garras. O corpo todo acetinado, ficou espesso, gosmento, o corpo dele era uma lixa no meu corpo. Nasceram dentes pontiagudos na sua boca,os braços se multiplicaram e ele me penetrou com violência, foi uma dor aguda, uma dor só, entrou em mim como uma faca. Sentia rasgar tudo dentro de mim. Acho que comecei a sangrar, e chorei. Mas ele não parava. Cada vez mais intenso. Solavancos ritmados, acelerados até que uivou como um lobisomem. Então se acalmou. Levantou-se, saiu de cima de mim e fiquei ali na areia. Aberta como uma ostra. Uma brisa arrepiou a minha pele. Ele sorriu, já tinha voltado a ser homem. Era, de novo ele, bonito, corpo dele... Ah, o corpo dele... Saiu pelado em direção a Lagoa ainda sem dizer nada. Eu olhei aquela bunda branca, musculosa, se afastando, achei bonita, achei nobre. Tu vê só, depois de tudo, ainda conseguir ver poesia na bunda dele.

ISMÊNIA
Foi ai que tu começou a nadar Lagoa adentro.

IZMÁLIA
Senti uma nuvem na minha mente. Precisava me lavar, lavar meu corpo, lavar a minha alma, me lavar por dentro. Mergulhei em direção a lua e nadei. Tinha uma lua no céu e outra na água. Foi aí que ele falou: “ei menina”. Ele não sabia o meu nome. Falou: “Ei, menina, onde você pensa que vai? Essa Lagoa é perigosa!”. Então eu perguntei. “Ei, você aí da bunda branca, sabe o meu nome?” Ele respondeu: “E precisa?”. Não precisa nada, bunda branca, precisa nada, nada, nada... e fiquei repetindo aquela palavra. Nada. Nada. Nadar! Nada. Nadas! E fui nadando, buscando o vazio, o imenso vazio dentro de mim, nadava em direção ao vazio. No meio da Lagoa, parei, exausta, soltei o ar, e deixei o vazio tomar conta. Um silêncio, uma escuridão, senti o carinho da água no meu corpo, senti meus cabelos embaraçados, me invadiu uma sensação de prazer, que veio em ondas, irradiava pelo corpo. Parei de respirar e o corpo desceu lentamente em direção ao lodo. Vi o clarão da lua se esmaecer no flutuar das ondas, agora era uma lua só, no céu e na lagoa, uma lua única, minha alma em direção dos céus, meu corpo ao fundo. A lua cada vez menor, eu cada vez mais ao fundo, cada vez mais findo. Fim do mundo. Deixei a escuridão e o silêncio tomarem conta. A lua se apagou. Então fui sacudido pela mão do Rodrigão. E escutei teus gritos. O Rodrigão me levou para a margem. Procurei o Bunda Branca, mas ele já tinha ido embora.

ISMÊNIA
Naquela noite, dormimos na barraca, eu, você e o Rodrigão.

IZMÁLIA
Dividir o mesmo homem tem sido nossa sina.

Cena 10
(ANSELMO, ISMÊNIA E IZMÁLIA ESTÃO NO TELHADO DA CASA. BRINDAM COM CHAMPANHE SOB O CÉU DE ESTRELAS.)

ANSELMO
Toma esta revista. Já tem?

ISMÊNIA
Bá, que legal. Essa eu não tenho!

IZMÁLIA
Que mania esta tua de revista de quadrinho. Revista de quadrinho é coisa de menino.

ISMÊNIA
Me deixa em paz.

ANSELMO
Olha lá, daqui a pouco vai amanhecer.

ISMÊNIA
Está vendo aquelas estrelas ali, bem em cima da cabeça?

IZMÁLIA
Estou.

ISMÊNIA
Gira para a esquerda, três horas, está vendo aquela pequena constelação? Capricórnio.

ANSELMO
Onde é Leão?

IZMÁLIA
Não sei.

ISMÊNIA
Mas tu também não sabe de nada. Ali é Câncer.

IZMÁLIA
Eu não me interesso por misticismo.

ISMÊNIA
Astrologia é uma ciência. No tempo da União Soviética os russos faziam pesquisas avançadas e só tomavam decisão depois de consultar os astros.

IZMÁLIA
Deve ser por isso que aconteceu o que aconteceu com eles! Eles quebraram feio.Não adiantou nada, então, toda esta tecnologia de ponta!

ANSELMO
Eu acredito que no futuro, qualquer decisão tem que ser primeiro autorizada pelos astros.

ISMÊNIA
Tu acha que o amor está escrito nas estrelas?

ANSELMO
Acho que o homem cria sua estrela, mas não custa nada dar uma escutadinha...

IZMÁLIA
Vocês estão viajando.

ANSELMO
Acho que vou fazer a faculdade de Direito.

ISMÊNIA
Direito?

IZMÁLIA
Ué, sempre achei que tu queria ser médico.

ANSELMO
Eu também. Meu pai médico, minha mãe médica. Só podiam ter filho médico. Mas a história da gente não é uma seqüência de fatos. Sinto que vivemos tempos aglomerados, as coisas nos atropelam o tempo todo, uma coisa está, um byte, um segundo, um átimo e não está mais!

ISMÊNIA
Eu não sei o que vou fazer, mas eu quero ganhar muita grana. Acho que vou investir na Informática ou em Administração. Ou na gerência de novas idéias. Consultorias.

IZMÁLIA
Eu quero ser mergulhadora. Entrar no fundo do mar, pesquisar as profundezas dos oceanos. Imaginou, dentro de um galeão pirata, resgatando os tesouros dos espaços abissais.

ANSELMO
Vocês vão administrar a Empresa da família. O pai de vocês não criou um império suburbano para entregar para qualquer idiota que fica rico vendendo pão.

IZMÁLIA
Mas não foi tu que falou que a vida não é uma seqüência de fatos?

ANSELMO
Mas no caso de vocês, negar os fatos é de uma burrice factual!

ISMÊNIA
Eu até gostaria de administrar uma empresa grande como a de papai. Mas ele só tem olhos para a Izmália. Tudo é ela, ela é tudo.

ANSELMO
Está me parecendo um ciuminho.

ISMÊNIA
É só uma constatação. Nada vai nos separar.

ANSELMO
Caim e Abel pensavam a mesma coisa. Olha, os primeiros raios do novo ano.

ISMÊNIA
Anselmo, me dá tua mão. (ELE ESTENDE A MÃO E CONTINUA OLHANDO PARA O AMANHECER.) E você também Izmália. Nós três, juntos.

ANSELMO
E o futuro ali.

IZMÁLIA
Tenho medo.

Cena 11

(MUDANÇA DE CLIMA. O HOMEM ESTÁ COM AS DUAS MULHERES.)

IZMÁLIA
Anselmo, como quem você vai casar?

ISMÊNIA
Comigo. Vai Anselmo.

IZMÁLIA
Não, pensa bem. Casa comigo Anselmo.

ANSELMO
Como é que eu posso escolher?

ISMÊNIA
Assim, apontando o dedo.

IZMÁLIA
Faz um sorteio. Par ou impar.

ANSELMO
Eu gosto das duas. Posso casar com as duas?

IZMÁLIA
Não.

ISMÊNIA
De modo algum.

IZMÁLIA
Mas o que tu sente quando me beija?

ANSELMO
É bom.

ISMÊNIA
O que tu sente quando me abraça?

ANSELMO
Prazer.

IZMÁLIA
Qual das duas, Anselmo?

ISMÊNIA
Diz, Anselmo.

ANSELMO
Preciso pensar melhor.

(BEIJA IZMÁLIA, DEPOIS BEIJA ISMÊNIA.)

ANSELMO
Estou na dúvida. Preciso de uma segunda opinião.

(VAI BEIJA-LA DE NOVO. IZMÁLIA RECUSA.)

IZMÁLIA
Chato.

(SAI DE CENA.)

ANSELMO
Foi bom ela sair. Eu tenho uma coisa para te falar. Eu quero ficar contigo. Sempre quis, desde o tempo que a gente era criança. Sempre te queria mais, sempre me sentia melhor contigo. Tenho que dizer, ela é mais bonita que tu, mas eu te quero.

ISMÊNIA
Não quero ficar contigo. Eu aceitei ficar perto de ti porque a Izmália te queria, quando a gente ia, de tarde, na tua casa, era porque ela insistia.

ANSELMO
Eu sei que tu me ama. E eu também te amo.

ISMÊNIA
Tu é louco? Tu é surdo? Não está ouvindo o que estou te dizendo? Esquece, não quero nada contigo.

(ANSELMO SE APROXIMA SENSUALMENTE DE ISMÊNIA. ESTÃO MUITO PRÓXIMOS. NA IMINENCIA DE UM BEIJO. IZMÁLIA VOLTA.)

IZMÁLIA
O que faziam nas minhas costas. Senti que sobrei.

ANSELMO
Não, vem cá Izmália. Eu já sei quem eu quero.

(BEIJAM-SE E ANSELMO PROCURA O OLHARA DE ISMÊNIA QUE RECUSA.)
Cena 11

(ISMÊNIA COMEÇA A CHORAR. IZMÁLIA SE APROXIMA.)

IZMÁLIA
Não fica assim. Tu vai ser a madrinha do meu casamento. Não é por isso que tu está chorando?.

ISMÊNIA
Estou emocionada. Queria tanto te ver feliz.

IZMÁLIA
Eu estou feliz. Agora eu quero que você fique feliz. A gente é irmã, mas mais do que isso, mais do que o sangue, a gente se ama e é fiel uma a outra.

ISMÊNIA
Desde que papai morreu eu não sinto uma tristeza assim. Funda na alma, uma navalha na emoção, um sangrar lento e constante.

IZMÁLIA
Mas não é para isso. Eu também sofro todos os dias a perda do pai, o pai era uma cara especial. Puxa, o pai é a pessoa mais importante na vida de uma mulher. E no casamento então...

ISMÊNIA
É mais importante a que o noivo!

IZMÁLIA
Não exagera! Eu estou bem na empresa. Não era o que eu queria da minha vida, mas não posso jogar fora todo aquele patrimônio.

ISMÊNIA
Posso te pedir um favor. Queria trabalhar contigo na empresa.

IZMÁLIA
Eu ia te falar isso.

ISMÊNIA
Sério. Tinha medo de perguntar. Ele deixou explicito que tu deveria assumir tudo. Não deixou uma linha para mim.

IZMÁLIA
Ele deixou tudo para mim, certo, eu sou a dona, certo, então tu é a minha chefa. Isso é uma ordem. Agora, vamos para a igreja? Quero subir no altar pela tua mão. Tu é meu pai e minha mãe. Dá isso para mim?

ISMÊNIA
Daria qualquer coisa por ti.

IZMÁLIA
Então me dá um sorriso. Vamos?

(ELAS SE ABRAÇAM.)

Cena 12

ANSELMO
Quando as duas apareceram na porta da igreja eu não acreditei. Estava tudo resolvido dentro de mim, que você entraria pela mão de um tio ou um primo ou mesmo um amigo. Mas quando vi vocês duas, lindas caminhando para mim, pensei: e agora com quem eu caso? Queria casar com as duas. Porque não poderia casar com as duas. Sei que um raciocínio destes parece absurdo agora, mas na hora achei que até era possível. Como nestas tramas do coração a gente pode se enganar tanto? A música nupcial tocou e meu coração batia desordenadamente. Eu lembro que me coloquei no meio do corredor, Izmália a esquerda, Ismênia a direita e, na medida que vocês se aproximavam, mais eu me descompassava, mais eu achava que estava casando com as duas. Quando a Ismênia me estendeu a mão, passando Izmália para mim, eu comecei a chorar. Todos acharam que era emoção e aplaudiram. Então eu disse sim, que um sim, para Izmália e era uma sim para Ismênia e era um sim para alguma coisa que eu sabia que levaria uma vida para resolver.

IZMÁLIA
Mas logo você pode corrigir o seu erro.

ANSELMO
Não foi um erro. Eu te amei. Mas daí algo foi mudando.

IZMÁLIA
Sim, você começou a me trair.

ANSELMO
Não foi tão simples. Não foi uma sacanagem...

IZMÁLIA
Não foi? O que foi então?

ANSELMO
Eu sei que tudo que os homens fazem parece sacanagem. Tem um bicho dentro de cada homem que é um pouco predador mesmo, e a maioria das vezes é sacanagem mesmo, mas nem sempre é. Embora pareça que seja.

IZMÁLIA
Você é um idiota, como todos os homens.

ISMÊNIA
Escuta o que ele está falando. Tão nunca vai entender um homem se não escutar o que ele diz.

IZMÁLIA
Mesmo que o que ele diz é uma bobagem. A gente pode compreender e amar uma pessoa que só fala bobagens, non sense, desculpas esfarrapas e arrependimento falso?

ISMÊNIA
Acalma esta raiva. Assim não vai a lugar algum.

IZMÁLIA
Eu já fui até onde podia ir. Tu me pediu para ter ver, eu vim, eu vi, a agora eu estou indo embora.

ANSELMO
Espera, eu não tive escolha! Você praticamente me jogou nos braços da Ismênia! Ficou me recusando carinho, recusando amor, recusando sexo. Você acha que só amizade e parceria segura um casamento? Eu adorava quando ficávamos conversando na cama, quando riamos das coisas, adorava os almoços de domingo, a janta requentada tarde da noite, as conversas sobre tudo. Mas faltava alguma coisa. Eu te sinalizei muitas vezes, você não pode me culpar por isso.Você sempre tão dona de mim, tão senhora de si, tão controladora de tudo.

IZMÁLIA
Se é assim mesmo, então eu controlei a minha própria traição!

ISMÊNIA
Por favor, Izmália, não te torture deste modo. Dói compreender, mas dói uma vez, se tu não entenderes vai doer o resto da vida!

(PAUSA. SILÊNCIO. IZMÁLIA ACENDE UM CIGARRO.)

ISMÊNIA
Estamos num hospital e você não fuma.

IZMÁLIA
E daí, tenho que aprender a quebrar as regras de vez em quando.

(TENTA FUMAR, TOSSE.)

IZMÁLIA
Como é horrível fumar.

ANSELMO
Acho melhor, achar outra regra para ser quebrada.
(SORRISO. ENTRA UMA MÚSICA, OS TRÊS FICAM EM SILÊNCIO ENQUANTO PASSA UM AVIÃO POR CIMA DO HOSPITAL.)

Cena 13
(ANSELMO PEGA O CINZEIRO E SAI DO QUARTO.)

IZMÁLIA
Até hoje não sei como foi que ele ficou contigo.

ISMÊNIA
Eu não ficou comigo, ele se apaixonou por mim. É diferente.

IZMÁLIA
Como assim? Foi uma aventura!

ISMÊNIA
Doze anos? Aventura de 12 anos. Bota aventura nisso, subir pelo lado Himalaia pelo lado Sul, cruzar o deserto de Saara com um cantil de água de coco! Pedalar de Paris a Dakar! Isso é aventura. Doze anos é uma história de amor.

IZMÁLIA
História de amor? Só isso?

ISMÊNIA
E de sexo também.

IZMÁLIA
Sexo? Tu quer me enlouquecer. Eu te falei que não queria saber de nada de detalhes.

ISMÊNIA
Então não vamos falar. Não vou falar que ele me contou como transava contigo.

IZMÁLIA
Ele te contou isso?

ISMÊNIA
Não, não contou! Fez teatro. Ele deitava, te imitando, assim...

IZMÁLIA
Isso parece uma boneca inflável.

ISMÊNIA
Justamente essa era a encenação. Daí ele começava. Suando, pingando por todos os poros, fazendo todos os malabarismo que ele sabia e os que não sabia. Enquanto isso, tu lixava as unhas, pintava o quarto, fazia a lista do super mercado!

IZMÁLIA
Não é verdade. Eu fazia tudo que ele queria.

ISMÊNIA
Tudo?

IZMÁLIA
Tudo, tudo, tudo! Fazia tudo... do meu jeito.!

ISMÊNIA
Então. Qual era o teu jeito?

IZMÁLIA
Eu tirava a roupa. Deitava. Ele me abraçava. Eu sentia cócegas.

ISMÊNIA
Cócegas?

IZMÁLIA
Mas logo passava, daí eu fazia o que ele queria.

ISMÊNIA
Que era?

IZMÁLIA
Deixar ele fazer tudo que ele queria.

ISMÊNIA
Mas e tu? Tu queria ele.

IZMÁLIA
Eu amava ele.

ISMÊNIA
Mas amar neste caso, não é o suficiente.

IZMÁLIA
Mas o que tu fez?

ISMÊNIA
Quer saber mesmo. Eu me vestia...

IZMÁLIA
Como é que é? Tu te vestia? Vocês iam transar e tu te vestia? Ah bom, então foi por isso que ele me deixou. Tu te vestia. É obvio que todo homem adora que na hora de transar a mulher se vista! Ora, faça-me o favor!

ISMÊNIA
Cada dia eu me vestia de uma coisa diferente. Na primeira vez ele me mostrou uma revista em quadrinho, HQ.

IZMÁLIA
Tu sempre adorou HQ e eu adiava! Que revista era?

ISMÊNIA
Valentina. Eu coloquei uma cinta liga igual à Valentina, uma peruca channel, e fiquei com cara de desamparada.

IZMÁLIA
Tu fez os beiços da Valentina? Assim?

ISMÊNIA
Fiz. Aí ele entrou no quarto e já ficou louco. O negócio dele ficou assim de grande.

IZMÁLIA
Mas comigo e tinha que fazer uma força desgraçada, cansei de assoprar, assoprar e ele nada...

ISMÊNIA
Assoprar?

IZMÁLIA
Não gosto de falar... (SUSURRA ) boquete. Prefiro a tradução. Traduzi do inglês: blow job, acho menos chocante. Trabalho de assopro!

ISMÊNIA
Que trabalho de assopro! O negócio não é um trombone! Não é um pistão, não é um saxofone! Eu me vestia com as fantasias deles. Sabe que ele gostava de cinta liga, de meias escura e corpete. Foi um mês inteiro de cinta liga. Daí ele quis mudar. Me vesti de freira, de enfermeira, de vendedora de Avon, de alpinista, de corredora de maratona, até de Azulzinha ele me fez vestir...

IZMÁLIA
E te multou também?

ISMÊNIA, irônica.
Só quando ele fica tempo demais na área azul! Olha, tu não acredita no homem que ele é.

IZMÁLIA
Te escutando assim, não acredito mesmo. Estou como a sensação que fui ver o filme do século e dormi na melhor parte!

(TOCA O TELEFONE DO QUARTO.)

Cena 14

ISMÊNIA
Alô, estou pronta. Está bem. Com licença, tenho que fazer uma tomografia.

IZMÁLIA
Mas tu vai sozinha?

ISMÊNIA
O enfermeiro vem me apanhar. E o Anselmo está vindo também.

(ISMÊNIA SAI DE CENA. IZMÁLIA FICA SÓ, PENSATIVA, APANHA UMA REVISTA. ENTRA ANSELMO. ESTÁ DE TERNO, SOBRETUDO, CHAPÉU NA MÃO.)

ANSELMO
Desculpe, não sabia que você estava aqui.

IZMÁLIA
Pois é, nem parece, mas estou.

ANSELMO
E a Ismênia?

IZMÁLIA
Foi para a Tomografia. Nem sei como vocês não se cruzaram no corredor.

ANSELMO
O corredor estava cheio de gente, médicos, enfermeiras. Acho que teve alguma intercorrencia.

IZMÁLIA
Ela estava vestida de paciente...

ANSELMO
Como?

IZMÁLIA
Você poderia aproveitar para mais uma intercorrencia... Você com este terno de executivo francês, ela de paciente numa tórrida cena de sexo no corredor. As enfermeiras gritando. Os pacientes saindo de seus quartos segurando o soro e vocês ali realizando suas fantasias sexuais.

ANSELMO
Izmália, do que é que você está falando?

IZMÁLIA
Ah não sabe?

ANSELMO
Não. Acho que estamos falando de coisas diferentes. Eu falei intercorrencia. Uma coisa importante.

IZMÁLIA
E eu falava de intercorrencia, uma coisa muito importante.

ANSELMO
Cada vez mais entendo menos você.

IZMÁLIA
Entendo.

ANSELMO
Você ainda deve estar magoada comigo.

IZMÁLIA
Magoada. Imagina. Claro que não.

ANSELMO
Que bom que você pode compreender.

IZMÁLIA
Eu estou irada, enfurecida, tomada, possuída, endemoniada, mas magoada não.

ANSELMO
Pelo jeito vai difícil falar com você.

IZMÁLIA
Mas era tão fácil, não era? Falar, falar, como a gente falava. Tu era a melhor pessoa do mundo para falar. E como tu me escutava. Claro, quando tu não dormia enquanto eu te contava o meu dia, ou quando começávamos uma conversa no banheiro, tu saia, ia trabalhar e eu ficava falando sozinha até as onze da manhã. Ainda bem que o espelho estava lá. Nunca falei tanto com o espelho como naqueles anos que fomos casados.

ANSELMO
Izmália, tu não escutava o que eu dizia. Não escutava os sinais. Eu estava sinalizando há horas, mas tu no teu mundinho de faz de conta. Mundinho de quarto e sala e mobília nova.

IZMÁLIA
Por que tu não me pediu, eu me vestia de freira, de enfermeira, até de sado-masoquista se tu quisesse. Adoraria te dar umas chicotadas!

ANSELMO
Continuo sem saber do que você está falando. Que história é esta de fantasias?
IZMÁLIA
Mas tu não falou nada. Nunca falou nada. Parecia que estava tudo bem.

ANSELMO
Sempre parece. Parece porque a gente não quer ver.

IZMÁLIA
Sabe o pior? É que eu acreditei em ti.

ANSELMO
Mas tudo era verdade, pelo menos enquanto eu estive contigo, foi tudo verdade.

IZMÁLIA
Dá para acreditar nisso?

ANSELMO
Tanto quanto é possível dizer a verdade.

IZMÁLIA
Então não dá. Porque a gente mente demais, a mentira mente demais. Mente tanto que a gente acaba acreditando que a verdade existe. Nosso pensamento está contido dentro da mente, a mente já mente! A verdade é uma mentira. Eu sabia de tudo, ou pelo menos pensava que sabia. Sabia que tu sempre tinha alguma mulher por aí. Mas achava normal. Todo o casamento é assim. Não se pode ser verdadeiro no casamento.

ANSELMO
A não ser depois que termina.

IZMÁLIA
Depois que termina os casamentos são belos. As manhãs de sol, os cafés da manhã, as conversas na cama, ao final da noite. Tudo é belo.

ANSELMO
Desculpe. Não sou o homem que tu pensava.

IZMÁLIA
Nenhum homem é o que a gente pensa.Todo o mundo sabe disso. E eu também não sou a mulher que tu pensava que eu era. Eu não tinha tesão mesmo. Eu sou boa, muito boa, mas não tenho tesão. Fui no cursinho de sexo para transar melhor. A porra da mulher só dizia que eu tinha que relaxar. Mas como é que eu podia relaxar se era exatamente este o problema. Mesma coisa que eu ter dor cabeça, vou no médico e ele me diz que eu tenho que parar de me doer a cabeça. Como, meu santo? Como Doutor, como? Alguém pode me dizer como?

(CHEGA ISMÊNIA DO EXAME.)

Cena 15

ISMÊNIA
Pelo visto a conversa já andou bastante.

IZMÁLIA
Estávamos botando em dia doze anos.

ISMÊNIA
Sim, ali no posto de enfermagem é só disso que se comenta. Vocês estavam aos gritos fazendo confidencias!

ANSELMO
Como você vai?

ISMÊNIA
Indo sempre, para a mesma direção. (CANTA) Tudo isso vem, tudo isso vai, para o mesmo lugar de onde tudo sai...

IZMÁLIA
Bom, acho que vou dar uma caminhada.

ANSELMO
Foi bom te ver. Apesar de tudo.

IZMÁLIA
Por favor, mantenha a dignidade de um digno filho da puta. Me trate mal, seja grosseiro, pois se você me tratar bem, você vai me confundir.

ANSELMO
Não quero ser grosseiro com você.

IZMÁLIA
Mas seja. Seja grosseiro, seja estúpido, seja idiota, seja imbecil, seja insensível. Senão vai confundir o personagem. Se tu fores sensível, carinhoso e amável, eu vou deixar de te odiar. E se eu deixar o que vai ser de mim. Sem ódio como é que eu vou viver?

ISMÊNIA
Ódio ainda é uma coisa que a gente suporta. Pior é o amor ilícito. O amor não permitido, aquilo que a gente tem e é muito, demais, demasiado, em excesso. A felicidade em excesso dá a sensação de transgressão, de perversão. Tem vezes que acho que este câncer é excesso de felicidade e de prazer clandestino.

ANSELMO
Por favor, Ismênia, tu acha que um sentimento pode modificar as células? Isso é uma coisa genética, estava registrado no DNA, no corpo, corpo é o destino.

IZMÁLIA
Este papo está filosófico demais para mim. Vou dar uma volta. Beber um pouco e dar para o primeiro cafajeste que encontrar.

(IZMÁLIA SAI.)

Cena 16

ANSELMO
Ela está mal.

ISMÊNIA
Muito. Pior do que eu. Às vezes, câncer é dos males o menor.

ANSELMO
O que você falou de nós? Que histórias são essas que você contou para ela? Ela me falou de fantasias, freira, enfermeira...

ISMÊNIA
Menti. Uma mentirinha branca. Izmália é uma menina. Precisa acordar. A vida não é uma fantasia.

ANSELMO
Tem momentos que eu acho que você está planejando... Deixa pra lá! E você como está?

ISMÊNIA
Melhor. Pior. Melhor. Como foi a viagem? Trouxe as HQ que te pedi?

ANSELMO
Consegui um número esgotado da Valentina. E, supressa, olha só...

(ALCANÇA UMA REVISTA VELHA. ISMÊNIA SURPRESA.)

ISMÊNIA
A História d’O em quadrinhos. Adoro esta revista. Meu Deus, deve ter custado uma fortuna.

ANSELMO
Fechei contrato como o jurídico da Thompson.

ISMÊNIA
Não acredito! Começo a me arrepender de estar morrendo! A Thompson?

ANSELMO
Direto com a matriz. Vou passar uns tempos em São Paulo e depois me mudo para Estados Unidos.

ISMÊNIA
Ai, eu quero ir junto.

ANSELMO
Queria tanto que você fosse mesmo.

ISMÊNIA
Muito tarde. Me leva até a janela? Estou com vontade de ver o sol se por.

ANSELMO
Mas são quatro da tarde...

ISMÊNIA
E daí? Assim temos mais tempo. Tem uma coisa que eu quero que você faça.

(ANSELMO OFERECE O BRAÇO E OS DOIS CAMINHAM EM DIREÇÃO A JANELA. MUDANÇA DE LUZ.)

Cena 17

(CENA DA MORTE. IZMÁLIA AO LADO DA CAMA DE ISMÊNIA. ELA SEGURA A MÃO DA IRMÃ.)

ISMÊNIA
Eu estou com medo.

IZMÁLIA
Quem sempre teve medo fui eu. Lembra da gente na piscina do Petropole? Eu estava com medo. Tinha doze anos e tu treze. Brincava no trampolim quando o treinador de saltos parou na borda da piscina e ficou me observando. Foi quando eu vi que estava com medo. Você me olhou e fez sinal com a cabeça, fez sinal para que não tivesse medo. Que você estaria por perto. Você era minha sombra. Então eu prendi a ar e... mergulhei. O azul do céu, o azul da piscina, o impacto do corpo e o ruído grave da água se abrindo. E o azul, e o silêncio. Eu subia leve, entre bolhas de ar, era como se nadasse dentro de uma taça de champanhe. Na borda, um braço forte estava estendido para mim e senti uma força poderosa me puxando. Ele me convidou para fazer parte da equipe de saltos ornamentais. E eu perdi o medo...

ISMÊNIA
Sinto um escuro máximo na minha frente. Uma sombra que me acolhe. E sabe, se não fosse a dor que sinto, estaria feliz, abraçada neste destino que eu escolhi. A culpa é uma irmã gêmea da mulher. Ela gruda como a sombra, tudo que a gente faz é medido por ela. A culpa, culpa minha máxima culpa. Cada vez que eu abraçava o Anselmo sentia culpa, eu gozava e sentia culpa, eu ria e sentia culpa. E eu nunca fui tão feliz e tão culpada. Só que agora estou com medo. Muito medo. Lembra... meu umbigo foi enterrado junto com o teu...

(ISMÊNIA COMEÇA A CONVULSIONAR. ENTRA ANSELMO. PERCEBE A SITUAÇÃO. COMEÇA A FAZER MASSAGEM CARDIACA. CHAMA EMERGENCIA. IZMÁLIA TOCA NO OMBRO DELE. ELE OLHA PARA ELA. PERCEBE QUE TUDO JÁ CONTECEU.ELE SE ABRAÇA EM ISMÊNIA E CHORA. IZMÁLIA SE APROXIMA. MÃO DE ANSELMO TOCA NA MÃO DE IZMÁLIA QUE NÃO RECUA. MÚSICA INTENSA. ABRAÇAM-SE.)

Cena 18
(ESTÃO TOMANDO UM CAFÉ NA MADRUGADA.)

IZMÁLIA
Será que vai demorar muito para liberar o corpo?

ANSELMO
Falei com o médico e já vão resolver isso.

IZMÁLIA
Ela sofreu muito.

ANSELMO
Mas estava feliz.

IZMÁLIA
Feliz? Você é estranho.

ANSELMO
Estava feliz de ter reconciliado como você.

IZMÁLIA
Quem disse que ele reconciliou comigo?

ANSELMO
A sua presença. Você aqui, todos estes dias. Era isso que ela precisava.

IZMÁLIA
Ismênia nunca precisou de nada.

ANSELMO
Ela parecia forte.

IZMÁLIA
Ela era forte. A mulher mais forte que eu conheci.

ANSELMO
Mulheres como ela parecem sólidas, inoxidáveis, fortes. Mas são líquidas. São mulheres.

IZMÁLIA
Ela era as duas coisas ao mesmo tempo. Uma mulher e uma criança.

ANSELMO
Eu queria voltar a ver as crianças, participar mais de vida deles. O que você acha?

IZMÁLIA
Se eles quiserem.

ANSELMO
Eu quero.

IZMÁLIA
Eles têm idade para decidir.

ANSELMO
Outra coisa.

IZMÁLIA
O que é?

ANSELMO
Ismênia me pediu uma coisa.

IZMÁLIA
Ela me pediu uma também.

(PAUSA. OS DOIS SE ESTUDAM.)

ANSELMO, blefando.
Imagino que deva ser a mesma.

IZMÁLIA, zombeteira.
Se eu conheço a minha irmã... ela armou tudo isso...

ANSELMO
Para nós...

IZMÁLIA
É ela armou tudo isso para nós...

ANSELMO
Vamos?

IZMÁLIA
Escuta, tu gosta de Valentina?

ANSELMO
Valentina?

IZMÁLIA
A revista. Em quadrinhos.

ANSELMO
A revista erótica?

IZMÁLIA
Vai dizer que não conhece?

ANSELMO
Conheço.

IZMÁLIA
Queria conhecer também...

(ANSELMO OLHA PARA IZMÁLIA SURPRESO. ESBOÇA UM SORRISO. OLHA PARA O LADO E VÊ ISMÊNIA, SORRINDO PARA OS DOIS. UM AR DE CUMPLICIDADE. ANSELMO E IZMÁLIA BEIJAM-SE ENQUANTO ISMÊNIA DÁ UMA ÚLTIMA OLHADA PARA A VIDA.)

CAI O PANO.

Porto Alegre, 15 agosto 2006.








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