FINADOS (outro conto de Julio Conte)


O feriado estava chato, nosso casamento pior. Vínhamos tendo dificuldades sexuais há seis meses, dois dias e oito horas. A última crise foi antes de dormir. Fiquei com dor de cabeça, irritado. Ela tomou dois comprimidos de Lexotan seis miligramas, acoplou o corpo no abaulamento do colchão velho e puxou os lençóis ignorando a minha presença. Eu virei na cama fixando a mancha cinza da parede. Levantei antes do amanhcer e sorvi meia chaleira de mate. Abri um livro apanhado a êsmo. Os personagens: Marcela, filha de um fazendeiro e um italiano sem nome. Ele passa a noite no quarto de hóspedes e na madrugada ela se aproxima da cama acorda o italiano, toma sua mão e coloca na vagina úmida. Ele derruba a mulher na cama, a possui, ela goza e termina o conto. Deito o livro sobre o sofá e fecho os olhos.

abro uma porta não sei onde, na penumbra das horas, vejo Marcela pelo corredor, ela atravesssa a sala, percorre a varanda, reconheço os cenários, a mesa da sala de meu Avô, o quarto dos fundo com a cama de ferro, um italiano corpulento, queixo quadrado, olhos fundo e a boca entre aberta, ele deita, uma criança se aproxima, se parece comigo, nada sabe do câncer que aprodece os intestinos do velho, deixando‑o raquítico, ossos da face saltados, pergunta o menino sobre a saúde do velho, pergunta ingênua, tudo bem, como vai, o velho abre uma boca sem dentes, esculpindo um sorriso diz que está mal, estou mal, muito mal, me ajuda meu Deus, uma braço escorrega da cama, o menino se surpreende com o velho dizendo a verdade, estou mal, repete sem para, estou mal, o menino não está mais no quarto e o velho repete, me ajuda, estou mal, a dentadura dentro do copo, a cama começa escurecer, o ferro torneado se transforma em madeira, o ornamento da guarda em crucifixo, o caixão sobre a mesa, o enterro do velho, um homem se aproxima do caixão, retira o braço semi‑rígido e sobe a manga de um paleto azul marinho, péssima qualidade, descortina a magreza, pele sobrando, ossos, dedos e unhas esvaziados pelo câncer, o menino ao pé do morto, chegada dos parentes, filhos, netos, bisnetos, as vozes aumentando, os curiosos, as conversar, foi bom morrer de uma vez, sofreu demais, era uma santa criatura, deus me livre mas já vai tarde, sofreu pouco para o que ele era, agora ele está bem, junto aos seus, ao filho e filhas, o menino levanta o olhar do avô, a foto da família por cima do ombro do tio, cada velório com seus defuntos ausentes, sobre o caixão a viúva se derrama num choro, mais a atrás a outra mulher, depois a terceira, mais ali a vizinha, uma multidão de mulheres, os filhos vivos olham com desprezo, relembrando as noites de ausência do velho, o ódio nunca superado contra o homem pela noites de abandono, tentativas de consolar a mãe, solitária ao lado do fogão a lenha, numa manhã qualquer ele voltava, a cavalo, braços abertos, sorriso largo, o vulto corpulento parado no mesmo lugar onde está agora o caixão, um grito, a correria para a janela dos fundos, um cavalo disaparando, meu irmão tentando se equilibrar, a cela escorregando, a queda, o ruído seco de um braço quebrado, o livro de contos na minha mão, eu fraturado por lembranças sem saber de onde nem porquê

Levanto a cabeça e respiro, estico as pernas sobre o sofá para dormir. O Avô estava sentado ao meu lado, sorri para mim. Uma lágrima escorre pelo lado de meu nariz. Ele continua sorrindo mas seu olhar não está mais em mim. Dirige‑se para o fundo da sala onde estão as samambaias e as violetas. Tampouco é para elas que ele mira. Puxa um cigarro de palha e acende. Uma imensa chama ilumina a sala. Percebo a presença de mais alguém, procuro por Laura, mas encontro Marcela. Coxas roliças, pés descalços, vestido arregaçado até os joelhos, mãos grossas de esfregar o chão. Cabelo preso por um lenço branco. Ela mira o Avô, solta o cabelo, joga a cabeça para trás num suave balanço e desenha um largo sorriso mantendo os lábios bem abertos. O velho levanta do sofá, caminha desabotando a braguilha. Marcela deita no carpete e Vô Antônio entra dentro dela com a paciência dos sábios. Ela geme. Fico encabulado. O velho vira‑se para mim e não diz nada. Levanto-me cuidadoso, o mínimo de movimentos e nenhum ruído, saio da sala. Antes porém ainda vejo o braço do velho, magro com quando morreu.

Tranco a porta da sala para minha esposa, desvisada, não interrompa. Gemidos aumentam e eu me delicio. Não é todo o dias que os mortos se amam. Para eles não há finados. Laura boceja, ameaça acordar e se enrosca nas minhas pernas. Eu a beijo e ela retribui:

- Eu te amo, deculpe por ontem a noite – sua mão quente delisa pelo meu corpo, despe a minha roupa e disolve minha mágoa. Não penso em mais nada. Entro lá no fundo dela quando Marcela começa a gozar na sala. Daqui a pouco Vô Antonio vai acender outro cigarro. Talvez eu começe a fumar.

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