CRIATIVIDADE MOVENDO SENTIMENTOS



 Quando é que a criatividade move sentimentos? Ou quando os sentimentos movem a criatividade? Ou quando a criatividade não move sentimentos? No momento que fazemos estas perguntas corremos o risco de mergulharmos num argumento circular no qual o conceito de Sentimentos e o de Criatividade produzem uma instabilidade e não se pode mais determinar o que é produtor ou o que produção.  O argumento circular não é obrigatoriamente um equivoco desde que se saiba que estamos no meio de um argumento circular. A rigor, todos os processos lógicos contem dentro de si uma certa dose de argumentação circular. A circularidade é um dos elementos da complexidade, uma espécie de looping autoprodutivo e ele mesmo gerador de sentido. Assim o argumento circular ganha a flexibilidade necessária para manter a produção de pensamentos. Porém, perde-se chão, e pensar nisso implica entrar num campo que a psicanálise tem mais dificuldade. Os processos psicanalíticos sofrem, muitas vezes de uma linearidade. O pai determina isso, a mãe aquilo, e estamos dentro de um determinismo positivista. Ora, a  inserção de teorias modernas na psicanálise como a Teoria do Caos e da Complexidade, nos obriga a lidar com lógicas mais sofisticadas do que a relação de causa e efeito que é obviamente linear.
            Esta constatação no coloca frente a um problema e uma possibilidade é pensar, como Bion o fez, que talvez tenhamos que lidar com um inconsciente mais além do inconsciente freudiano. Bion trabalha com a idéia da pré-concepção e o inconsciente para ele é o inconsciente das pré-concepções. Isso significa pensar que a pré-concepção para o sujeito é uma expectativa vaga que no futuro existe algo, também vago, de características gratificantes,  acolhedoras e grandiosas esperando. Porém, o encontro dessa pré-concepção com a concepção, nunca é plenamente satisfatório. Quando acontece esta realização, temos um objeto que nunca é tão gratificante, nunca é tão acolhedor e nunca é tão grandioso. A realização parcial na busca do objeto grandioso entra em desequilíbrio e produz um tumulto, uma turbulência emocional. Mas esta pré-concepção continua em busca de uma realização que a satisfaça. O indivíduo segue tentando alcançar o equilíbrio. Quando consegue alcançar um estado emocional relativo, chegamos ao que Bion chamou de conceito. O conceito de certa forma estabiliza o desequilíbrio. O conceito cria um sistema dedutivo cientifico e o objeto artístico, ambos frutos da criatividade. A complexidade da pré-concepção é que é uma expectativa de primeiro, encontrar um seio gratificante e acolhedor que pode satisfazer as necessidades emocionais e psíquicas, e segundo, a expectativa que por trás deste seio existe um casal sustentando este seio, e terceiro,  por trás deste casal, existe uma sociedade protegendo a existência do casal, e mais ainda, uma quarta instância, que por trás desta sociedade existe uma mente criativa que é capaz de gerar pensamentos que sustentam uma sociedade mais protetora, mais gratificante, para que estes pais possam viver e  para que este seio possa funcionar. Então a pré-concepção chega na mente criativa como se ela volta-se a si mesma. Como num looping autoprodutivo, o seio produz a mente criativa que por sua vez produz a pré-concepção do seio. Deste modo, a mente criativa é fonte de  todos os processos do pensamento criativo e sua obra máxima é a criação do humano. Ela vai caminhando e criando coisas, vai abrindo e criando objetos. Cria objetos em dois sentidos. Cria com o sentido que Bion chamou de Narcisismo, como se fosse criando objetos narcísicos,  e como outro sentido,  cria objetos Social-istas. Objetos que garantem autonomia, relacionamento com esta sociedade que está tentando proteger. Ente movimento volta então sobre si mesmo, devolvendo a pré-concepção o caráter criativo, o caráter de originalidade e de encontro com o desconhecido
Este modo de pensar é bem diverso do modo de lidar com a criatividade a partir do conflito e do sintoma. A criatividade, os gênios e as grandes obras de artes que foram sistematicamente analisadas sob a luz da psicanálise segundo uma lógica linear que faz uma equivalência entre o sintoma e a obra criativa. Mesmo sob a ótica do conceito de sublimação formulado por Freud, penso que é quase impossível manter tal equivalência. Mesmo porque a sublimação é uma formulação descritiva e. por mais que se aprofunde, sempre se debate no que efetivamente produz tal zona de criatividade de um lado e sintoma de outro. A mim, parece o mesmo impasse que Freud se debateu sobre a escolha da neurose.
O motivo de tal confusão talvez seja que muitos gênios além da sua originalidade criativa também eram exuberantes na produção de sintomas e conseguiram produzir, ao mesmo tempo, objetos narcisistas e social-istas. Mas isso também é uma observação verdadeira que suscita uma interpretação linear e simplória.
Sob a lógica das Transformações temos que o sujeito faz Transformações em K, isto é, produz um saber e esta transformação pode evoluir para Transformações em O, sendo estas mudanças dentro do ser. O sujeito se transforma naquilo que ele conheceu, se transforma naquilo que ele descobriu de si.  Porém este movimento também contém suas armadilhas e pode perverter a Transformação em O produzindo a megalomania.
Então, se tem sentido o que tenho sustentado em outros trabalhos, que a obra freudiana lida com a criatividade do mesmo  modo que lida com os sintomas, e que a formação de compromisso entre o desejado e interdito ao gerar tanto o sintoma quanto à obra criativa, cria uma linearidade sufocante. É difícil de sustentar tal afirmação, embora acredito que muitos possam, com talento, faze-lo. E para isso terão que fazer uso de uma argumentação circular enclausurada, esterilizada e simplória. As motivações e determinações que levam alguns indivíduos frente a um conflito psíquico evoluir para uma neurose e porque em outro se torna uma criação ainda é um hiato.  Porque o homossexualismo de Leonardo da Vinci vai produzir a Mona Lisa e não um travesti é uma questão para quem de dispõe a pensar a psicanálise livre de idolatrias.

            Penso              que a psicanálise é uma grande ferramenta do homem contemporâneo e ainda não se inventou outra melhor. A transformação de impressões sensórias, de sentimentos em pensamentos através da linguagem é ainda o maior passo da humanidade. Embora isso não nós garanta tal adjetivação. O humano é uma condição instável do homem e pode ser perdida a qualquer momento. Por outro lado, a psicanálise está longe de ser uma super explicação para a vida. Acho que a vida, na sua complexidade possibilita uma interpretação pela via da psicanálise. Em Como Tirar Proveito de Um Mau Negócio, Bion nos fala de três princípios de Vida, extraído dos dois princípios do suceder psíquico. Evoluindo a partir do Princípio do Prazer  e do Principio de Realidade, Bion estabelece três princípios de vida. Que seriam: o primeiro, sentimento; o segundo pensamentos antecipatórios; o terceiro, sentimento, mais pensamento, mais Pensamento (com P. maiúsculo, que seria sinônimo de prudência ou previsão na ação.)
           
            Como estes três princípios, primeiro destaco a idéia de princípios, ou seja diretrizes e não regras, quer dizer não se trata de leis, nem caminhos, mas sim de direções. Com estes três princípios Bion encaminha para um pensar democrático, vincular, instável e transitório. Aproxima-se da produção artística e que se submete à estética e a ética. Com isso, aqui faço meu segundo destaque, Bion nos direciona para o mais primitivo do  humano, que é o sentimento. O sentimento é a primeira interpretação do mundo. O que o individuo sente é aquilo que no futuro ele vai pensar e num futuro ainda mais remoto, mas que pode ser imediato, vai repensar e agir. 

            Então o germe do pensamento está num sentimento. Sentimento é uma espécie de pensamento embrionário. E neste contém vários futuros possíveis.  O que se pode dizer do Projeto de Freud, senão que se trata de um pensamento embrionário, antecipatório que antevê o universo que Freud está prestes a formular e que se representa plasticamente na nota de roda pé da Interpretação de Sonhos, no início do Capítulo 3:

A coisa toda é planejada seguindo um modelo de um passeio imaginário. Primeiro vem o bosque escuro das autoridades (que não conseguem enxergar as árvores), onde não há nenhuma visão nítida e é fácil se perder. Depois há um desfiladeiro cavernoso por onde conduzo meus leitores – meu sonho modelo, com suas peculiaridades, seus detalhes, suas indiscrições e seus chistes sem graça – e então, de chofre, o terreno elevado e a visão ampla, e a pergunta: ‘Por onde podemos ir?’ (carta a Fliess, 6 de agosto de 1899.)

Essa pergunta é feita na medida que Freud acolhe a penumbra, aceita a escuridão para emergir dali através de um desfiladeiro até o alto e a visão plena. Jaques Lacan produziu outra visa o muito interessante quando preparava o seminário em Baltimore. Era madrugada, hora das penumbras e viu pela janela o amanhecer revelando as formas da cidade emergindo da escuridão e sob este impacto emocional produziu a frase famosa:

O inconsciente é Baltimore ao amanhecer.

Bion, faz uso de John Milton, quando no capitulo três do Paraíso Perdido, afirma que o universo se cria a partir do “vazio, infinito e sem forma”. São imagens produzidas por três pensadores da psicanálise que contém um uma máxima aristotélica: só se pensa com fantasia. Fantasia aqui no sentido de conjectura imaginativa.
           
Temos através dessas imagens um meio caótico no qual em se limite, algo se organiza, algo se conjuga, algo até então ausente da nossa percepção se condensa e passa a existir. É o momento da criação no limiar do caos. Uma saída de uma posição marcada por elementos dispersos se chocando em altas velocidades e o encontro do fato selecionado que dará uma certa coerência ao caos. Um continente que, de repente, realiza um conteúdo que rompe este continente. Que é a formula da criação:1+1=3.  Este conteúdo que rompe o continente é a realização da formulação edípica traduzida para uma matemática básica. E esta ruptura cria novos círculos de saber.

A minha conjectura imaginativa para dar conta da criatividade tem a ver com a idéia de Bion. Ao formular os três princípios de vida Bion coloca o sujeito no encontro com o outro dentro de uma turbulência emocional. Esta turbulência é resultado do primitivo dentro de nós quando o animal humano sente invadir o seu território. E o anterior ao humano é a mente primitiva que habita em todos nós. Esta criatividade radical advém do humanóide no momento que ele cria algo para si que o transforma radicalmente. De um símio desprovido de habilidades maiores, corre pouco, não tem garras, não tem muita agilidade e é extremamente frágil nos primeiros e nos últimos anos de vida, vai se produzir um animal que sobrevive a quase tudo, o homem através do uso da linguagem. Então esta linguagem vai manter diálogos com essa  mente primitiva. E esta por sua vez, por estar no limite do caos, no limite do ser, contém o máximo potencial criativo e também o máximo potencial destrutivo.
Tanto o potencial criativo quanto o destrutivo tem a ver com este primitivismo que o verniz da cultura e da civilização não apagou. Essa conjectura imaginativa, que não pretendo que seja cientifica nem ao mesmo verdadeira, mas sim válida, se apóia na descoberta de que o  homem primitivo, Croma-gnon teve contato e foi contemporâneo do Neanderthal. Então, neste caso, o homem teria, na aurora da sua criação, convivido com a destruição, possivelmente devido a confrontos mortais, de uma espécie muito parecida com a sua. É possível então que no mesmo momento que aquele homem primitivo inventou a  civilização, destruiu seu semelhante.
A criatividade ganha então um caráter de potencia que tanto pode destruir como  se inventar. Bion chamou estes processos nos quais o sujeito conquista um conhecimento e se transforma no tal conhecimento, de transformação em O. A produtor e produto se confundem  e se fundem. O risco neste momento é a que este tipo de transformação criativa pode evoluir para um mundo narcísico ou se espraiar no social. Se voltar para si, corre-se o risco de um mergulho na megalomania e na onipotência. 

Penso que a mente primitiva está de certo modo, mais além da repressão, e é o germe da originalidade. Por isso, penso que o homem primitivo ainda é mais criativo em relação ao homem contemporâneo, pois inventou a humanidade ao passo que nós, se temos a nossa disposição tecnologia que nossos ancestrais nem imaginavam, nosso campo de ação se realiza mais pela repetição do que pela criação. E esta repetição nos dá a ilusão de ser criativos quando muitas vezes, somos apenas arrogantes. Somos muito bons em repetir, principalmente dentro de uma certa psicanálise onde os trabalhos e as citações se repetem e se cristalizam.
E se tudo isso não é uma fantasia temos que pensar que tipos de sentimentos movem a criatividade. Até agora, o sentimento essencial que moveu os meus pensamentos são da ordem do acasalamento, da ordem da criação de um  futuro, e, numa análise mais profunda todos os sentimentos que movem a criação têm um luta contra a morte e contra todo o tipo de perda. O homem humano desdobra-se sobre si mesmo no sentido de extrair vida exatamente de onde ela se esvai. É o sentimento de reparação associado com um desejo de eternidade.  E isso tem que ser diferenciado da estado maníaco, que é em geral improdutivo, de um estado de auto-amor que é fonte de uma esperança de encontrar o objeto gratificante e, ao mesmo tempo, reconhece a impossibilidade. É o sonho de ser eterno sabendo que não somos nem nunca seremos. Todo criador tem algo de sonho e sonhador e algo da realidade. Esta combinação proporciona a ação essencial e radical em direção ao novo.
Neste viés, o que  move no processo criativo é um sentimento que é ao mesmo tempo uma interpretação transformada em objeto social. É um ato e um modelo. Um contato com nosso mais profundo do ser, que é a pré-concepção.  

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