Encontrei meus pais na cozinha
Encontrei meus pais na cozinha. Lugar mágico das alquimias,
dos segredos familiares e receitas anotadas em pedaços de papel cujo acesso é
permitido apenas aos letrados nas línguas dos temperos e pequenos segredos ancestral.
Encontrei-os durante o chá da tarde entre aromas adocicados, biscoitos, pão
caseiro e uma profusão de geléias de todas as cores. Ela levava xícara
lentamente a boca, tremendo a mão, criando um suspense e despejando uma série
de margaridas manchadas sobre a toalha de renda. Meu pai ao me ver ficou
eufórico. E entre demonstrações de carinho atávico, começou a falar com seus
interlocutores imaginários. Seu mundo de
negócios retornava com força das grandes enchentes. Ameaçava, discutia e realizava
grandes empreendimentos, acertava propostas, preparava viagens eminentes e superava
um a uma os entraves financeiros. Em seguida, ele olhou para mim e pediu que eu
preparasse o carro para viajar para Caxias, reiterou a urgência da viagem, a
necessidade da reunião, e pediu que eu apanhasse o sobretudo de lã inglesa,
pois na serra gaúcha a temperatura seria abaixo de zero. Minha mãe, quando escutou o derrame de
insanidades, suspendeu a xícara
encostada no lábio e como que congelada naquele instante, recorte do tempo,
suplicou que eu interviesse e inibisse os pensamentos delirantes. Mas sabia que
eu nada podia dizer. Eu há anos observava sua agonia com os delírios do pai. A
raiz de tudo remetia a um passado remoto quando meu irmão mais moço iniciou uma
verborragia delirante, alucinações e fantasias nas quais se destacavam nazistas
tomando cargos públicos, morte de pessoas amadas e complôs de extermínio. O
surto pegou a família de surpresa e deixou marcas que o tempo e a insistência
da loucura não deixava apagar. Como um corte que nunca cicatriza meu irmão
atravessou sua vida sempre a lembrar que estávamos todos há um passo do
precipício de insanidade. Entre todos,
mamãe foi a mais afetada pela doença do meu irmão. Perdeu ali, sem dúvida, a
sua alegria de viver que,diga-se de passagem, já não era muita antes deste episódio. E as
noticias da psicose vieram com graus de sadismo quando o Dr. Bacana, como ficou
conhecido na família, por seu jeito afetado, pelas palavras rebuscadas, começou
a explanar os mecanismo e conseqüências da doença, buscando exemplos e
desenhando um quadro cruel mencionado com todas as palavras que culminavam com no
beco sem saída de loucura. O golpe fatal
do Dr. Bacana foi quando resolveu falar da etiologia e citou exemplos de como a
família podia enlouquecer seus filhos. Pais ensimesmados, mãe deprimidas e toda
a possibilidade de criação de um ambiente asfixiante, tão propício a doenças
mentais. Minha mãe acusou e nunca mais se recuperou de tal golpe. Por isso, no
chá da tarde, quando papai delirava parecia que um novo dilúvio se realizava e
a arca não mais existisse, abria-se o mundo sem esperança, sem futuro, sem mais
nada a não ser o horizonte de águas turbulentas e revoltas. Foi neste instante
que ela pediu minha ajuda, primeiro com o olhar suplicante, depois com palavras
e por fim me chamando para um canto. Queria que eu interrompesse o entusiasmo
de papai, que rompesse o ciclo delirante, que se revigorava pela fantasia de
estar retomando os melhores momentos da vida de papai quando os negócios
ocupavam sua vida e era o objetivo maior. Os delírios e planos e negócios eram
a volta aos bons tempos, quando ele sentia a mente e o corpo afiados para os
desafios. Por um instante, pensei efetivamente e cortar aquele ciclo de sofrimento
fazendo uma pergunta diversionista, mas não o fiz. Pensei numa intervenção
didática e explicativa, mas também não o fiz. Alguma coisa em mim falou mais alto e resolvi
dar corda para a conversa de papai. Discuti detalhes do negócio, me
prontifiquei a viajar e disse que ia buscar o casacão de lã. Minha mãe ficou
muito braba e depois de um tempo desfilou reprimendas. Foi quando eu respondi,
que aos cem anos, papai seguia fazendo o que gostava, o que lhe dava prazer,
lhe conferia uma alegria. E frente ao poder de tal emoção, questionei o que
importava se os sócios já estavam mortos e se as empresas com as coisas queria
negociar não mais existisse. O que importava se todos os elementos da trama não
mais existissem uma vez que em sua mente dele tudo era tão vivo, tão intenso a
tal ponto que dispensava a realidade para seguir vivendo. Minha mãe fechou-se
num silêncio resignado e eu me surpreendi como a minha religiosidade.
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