ESPIRAL DE LUZ

Piloto de uma mini série a espera de uma produtora

Cena 1 - EXT. – BAIRRO – ENTARDECER

VOZ OFF DE JUCA

Esta é a Terra. Vista assim do espaço a gente não imagina o que acontece lá embaixo.

INSERT

A visão da terra, azul, semelhante a que se vê no Google Earth. Vai se aproximando. Aos poucos se pode distinguir o desenho do Brasil.

VOZ OFF DE JUCA

Este é o Brasil. Ali no meio do mundo, esperando para ser descoberto por nós, os brasileiros. E esta é a minha cidade.

INSERT

Depois se aproxima mais e percebemos a cidade. Grandes prédios, avenidas largas. Ônibus passam e apenas percebemos a multiplicidade de cores.  Rasgos coloridos. Buzina, música, sons indefinidos. Babilônia.

VOZ OFF DE JUCA

Estamos chegando perto da minha casa. Este é meu bairro.

INSERT

Ruas largas dão a lugar a caminhos tortuosos, estreitos. Carros dão lugar a pessoas caminhando apressadas. Traços visuais. Rasgos que se movem. Olhar de um homem preocupado. Uma mulher procurando um endereço. Olhares que buscam. Detalhes de mãos, pés, sapatos, golas de camisas, orelhas, todos e tudo a dar uma impressão de pressa e ansiedade.

VOZ OFF DE JUCA

Aquele menino é o Willian, meu irmão. Ele adora picolé.

INSERT

Uma criança alheia a tudo brinca na calçada. Tem uns quatro anos, está sentada no meio fio. As suas costas e a sua frente passam pessoas, vultos, mas a criança ocupa o centro da cena e está em contraste com todo o clima até então. Tem uma calma quase absoluta.

O menino come um picolé que aos poucos começa a se derreter na boca.

Pingos derretidos escorrem pela mão e caem no chão. O rosto lambuzando.

Uma certa ansiedade, criança se apressa e engole o picolé.

Termina de comer e olha para o palito do picolé como que buscando entender.

Cena 2 - INT. – DEPOIMENTO – AMBIENTE FORA DO TEMPO E DO ESPAÇO

Juca falando diretamente para a câmera.

JUCA

Willian é um dos seis irmãos que tenho. Moramos no Bairro desde que o mundo é mundo e o Brasil foi tri campeão no futebol. Naquele tempo todas as pessoas legais eram contra o governo. A história que vou contar é um retrato de um momento. Sabe o que eu mais gosto do bairro? O cheirinho do feijão. Neste dia eu estava indo para o colégio. Ia passar antes na casa da Soneide. Eu gosto dela desde criança. Eu, ela e o Lifeboy somos unha e carne.

FLASH-BACK  INSERT

Soneide e Juca correndo pelas ruas. Lifeboy perseguindo, eles dobram uma esquina e se se encostam à parede. Respiranção ofegante. Ele se olham. Beijam-se. Lifeboy chega e pega os dois. Para de brincar e percebe o clima.

CORTE

INSERT NO PRESENTE

Soneide se arrumando para ir para a escola.

CORTE

INSERT NO PRESENTE

Lifeboy no seu quarto estudando. Olha o relógio.

CORTE

INSERT NO PRESENTE

Soneide olha para o relógio. Despede-se da mãe e sai.

CORTE

INSERT NO PRESENTE

Lifeboy olhando para Juca, olhando para Soneide, que olha para um e para outro.

VOZ EM OFF DE JUCA

O Lifeboy eu conheço desde que nasci. Nascemos no mesmo dia, no mesmo hospital. Só não foi da mesma mãe. Mas isso é apenas um detalhe, porque a mãe dele morreu e foi a minha que nos criou. Anos depois tia Neneca casou com o Luiz e o Life foi morar com eles. Ela faz um feijão que todo o mundo adora.

Cena 3 - INT. – DEPOIMENTO – AMBIENTE FORA DO TEMPO E DO ESPAÇO

JUCA, falando para a câmera. Direto, intimo, confidencial.

Agora vem uma parte triste da minha história e a rigor eu não poderia, nem deveria contar para vocês, pois contar dá um caráter absurdo para a história, mas a vida é assim... O que fazer? Eu falava do feijão...

CORTE PARA

Cena 4 - INT. – CASA DE LIFEBOY – ENTARDECER

Panela com feijão fumegando. Uma colher de pau mexe o feijão na panela.  NENECA, uma mulher de 28 anos, evangélica, crente. Veste-se toda de cinza. O rosto sofrido, aparentando mais idade do que tem. Ela segura a colher. Envolta numa fumaça densa, levanta o olhar e observa, através de uma janela, a criança sentada no meio fio.

Cena 6 - EXT. – INSERT – ENTARDECER

A movimentação do bairro. Um casal de jovens se abraça e beija. Eles olham para a barriga. Ele fala alguma coisa e ela sorri tímida. Ela é a Cida.

Dois rapazes, João e Pipoca, passam e dizem uma gracinha para uma menina. Ela ri.O rapaz que falou a gracinha cora e perde a linha. O outro ri do amigo. Falam uma besteira para Cida. Ela responde com um gesto obsceno.

Um ônibus lotado passa na frente dele. Eles olham espantados e correm para pegar o bus.

Um homem gordo caminha  lentamente, seu nome é Pudim, ele sua muito. Olha para os lados atento. Passa por ele dois meninos correndo e gritando. Esbarram no homem que apenas sorri.

Juca cruza com amigos parados numa esquina. Entre eles está Pantera, todo vestido de preto. Estão bebendo e se divertem muito. Eles debocham de Juca, imitam-no caminhando com livros e fazendo posse de “doutor”. Juca que não responde. Segue adiante.

Uma moça falando sozinha. É Anastácia.

Aproxima-se da janela. Vemos através, Neneca mexendo o feijão. Vemos Juca de costas, uma mochila carregada e o sorriso de Neneca ao vê-lo. Ele acena e aponta para o relógio.

NENECA

Oi Juca, Life está na porta te esperando.  (Chamando.) Life!

Cena 7 - INT. – CASA DE LIFEBOY – ENTARDECER

Neneca não obtendo resposta. Chama por LUIZ, seu marido, um trabalhador, 29 anos, traços marcados em seu rosto. Ele parece bem mais velho. Tem muitas tatuagens pelo corpo. “Nele Confio” e “Nunca Mais” dentro outras se destacam. Ele é um homem sofrido, já cumpriu pena e está fazendo tudo para não voltar ao crime. 

NENECA

Luiz, avisa o Life que o Juca ta aí.

Luiz bate abre uma cortina que serve de divisória. Grita alguma coisa. Lifeboy aparece no corredor. Luiz volta para o quarto.

NENECA

Não vai jantar?

LIFEBOY

Na volta. Tem prova no primeiro período.

NENECA

Saco vazio não para em pé.

Lifeboy apanha uma fruta. De um vaso em cima do refrigerador ele retira dinheiro. Conta.

NENECA

Não vai gastar tudo.

LIFEBOY, ironizando.

Vou fugir para o Paraguai com cinco reais.

Morde a maçã e olha para a Tia.

A porta é furada por uma bala que passa rente a cabeça de Lifeboy. Escuta-se um tiroteio.

Luiz sai do quarto e atira-se no chão do corredor. Lifeboy encosta-se no marco da porta. Mais balas pelo madeirame. Neneca espia pela janela, grita e atira-se ao chão. Do chão, ela estica-se toda e consegue apagar o fogo, girando o botão do fogão.

Lifeboy dobra-se sobre si mesmo, escondendo a cabeça entre os braços. Ele vê Luiz e faz sinal para que fique onde está. Neneca grita e chora. Lifeboy faz sinal de calma para Neneca que não para de chorar. Luiz concorda com a proposta de Lifeboy e os dois quedam-se olhando enquanto diminui o barulho lá fora.

A porta se abre e param os tiros. Uma voz de mulher começa a gritar desesperada.

O corpo de Juca, já sem vida, se precipita sobre a porta entreaberta.

Juca cai quase em cima de Lifeboy.

Mochila igual a de Life nas costas, agora toda ensangüentada.

A voz da mulher lá fora aumenta. Luiz caminha até eles e separa os corpos.

Lifeboy fica deitando ainda, olhando para o amigo. Olhando para uma lâmpada. A lâmpada vai brilhando cada vez mais até se transformar no globo terrestre.

Imagem semelhante ao GOOGLE EARTH

Cena 8 - INT. – DEPOIMENTO – AMBIENTE FORA DO TEMPO E DO ESPAÇO

JUCA, direto para a câmera, intimo.

Eu sei que é chato, começar a contar minha vida assim, de trás para diante, como se a morte fosse o inicio. Mas isso é o que o Professor Erasmo chamava de transitoriedade. Pois o destino escorrega da mão e arma suas tramas. Cabe a nos mortais segui-las.