SONHO DE 24 DE JULHO

...deixa eu contar que acordei agora, querendo contar o que o que não contei ontem, quando estávamos festejando meu aniversário e o da Catha, ela dia 18 eu dia 24, e estamos eu mais Marília, Zé e a Sissi, na frente Regis e Flávia e a minha direita Catha e Pingo, e chegou a hora, depois do jantar, depois da champanhe, depois do vinho, da sobremesa, de todo o prazer que a as papilas gustativas poderiam sentir, depois do prazer que o corpo de células poderia sentir, depois que o corpo social estruturado poderia sentir, foi então, depois de tudo que eu senti que era hora de falar, mas eu não tinha o que falar, sabia, sentia, que o choro me percorrera todo o dia, aniversário é dobramento da vida sobre a morte e dobramento da morte sobre a vida, embora se nasça e se morra muitas vezes, na vida, na morte, embora se viva e se morra toda hora, aquela era a hora de falar e eu sabia que tinha que falar, mas não sabia o que, e só viria a saber agora, essa hora crepuscular, o dia nascendo e da escuridão, das sombras, emerge as formas, as emoções, a cidade e eu, eu agradeci, e disse palavras boas, tantas quantas vieram a minha mente, naquele momento, uma confusão delas, eu as procurava, é difícil achar as palavras quando se tem algo a dizer, algo escapa, ela não correspondem, então eu disse, disse aquilo que me foi possível, que a vida é este esforço entre o desejável e o irremediável, e falei da gratidão e da alegria, e escutei historias generosas e palavras de amor e conforto, mas o que eu não sabia, era um segredo dentro de mim, é que queria fazer do jantar de 57 anos minha análise, ou pelo menos partilhar um sonho, que é um sonho modelo, e só agora, amanhece e as palavras vem, depois de incubadas em barris de sonhos, depois algumas horas de sono, onde um sonho tumultuado e persecutório me acordou suado, estava fugindo de uma investigação que fatalmente me incriminaria, e que, neste sonho, eu tentava obscurecer as provas, e não obstante, elas todas convergiam para mim, como um milhão de olhos a me mirar, um milhão de dedos a me apontar, e quando acordei, não sabia o que fazer senão contar aquilo que não contei, aquilo que falaria se não tivesse perdido a oportunidade de falar ontem a noite, falaria do meu nascimento, contaria uma antiga história, a mãe morrendo na sala de parto, hemorragia, sangue, compressas, e o cheiro de sangue e o cheiro do líquido amniótico, e o cheiro do terror na sala de parto, e o terror de nascer, e eu ali, deixado num canto, como Moisés embalado rio abaixo, córrego, estuário escorrendo em busca de algo, e minha mãe, em morte eminente, cantava, então ela cantava, canções de morte, campos verdes e a alma se elevando, mas ela não morreu, eu nunca consegui cantar depois de escutar aquela música, a duras penas achei alguns tons para afinar, mas nunca lembro das melodias, nem das notas, só lembro das letras e falo ao invés de cantar, então, depois, ontem, falaria da minha filha, que nasceu num dia de calor absurdo, julho pode ser insuportável, calor batendo sem piedade, suores, e começou o trabalho de parto e as oito horas e cinco minutos, ou teria sido, quatro?, ela nasceu e lá fora uma tempestade veio, lavando o suor, lavando a dor de nascer, fazendo tudo valer a pena, o vento limpando as ruas, a chuva lavou o rigor das altas temperaturas, e então eu falando que ela trazia o vento dentro dela, a tempestade dentro dela, as forças da natureza dentro dela, e que talvez por isso seu quarto sempre fora um caos de roupas no chão, pratos, copos e televisão ligada, mais o computador, mais a internet, mais uma música e mais a confusão, mas que hoje, ela aprendeu a controlar as tempestades e o vento, dentro dela, transformando, o dentro dela, em usina aeólica, transformando, dentro dela, seus transtornos em criação, por isso, dentro dela, era uma pessoa tão criativa, tão bela, tão tudo, feliz ao lado do namorado, do homem, da vida, ali, feliz, e eu ainda teria que falar sobre o outro sonho que não falei porque precisava faze-lo, dize-lo, vive-lo, é o sonho dos sonhos, e neste sonho dos sonhos, estava eu em Forqueta, ali onde ficava a casa do Tio Joel, só que não havia casa do Tio Joel, no sonho agora ali havia um quiosque, destes que se vê em Punta, com um toldo ao vento, uma tenda árabe, eu sentado, e sentado ou deitado atrás de mim, sem que eu o visse estava meu pai, não falava, mas eu sabia que ele estava ali, e na minha frente, bela e jovial, minha mãe, recostada, a vontade, braço sobre o encosto do móvel, perna esquerda estendida tendo a outra levemente dobrada, assimétrica, e ao fundo o campo de futebol do União Forquetense, o campo depois da chuva deixava grama verde, muito verde, photoshop, de um  verde que acontece na natureza depois da chuva, depois do photoshop, e minha mãe falava para meu pai, que seguia atrás de mim, dizia ela que dançaria com ele uma música, que ele escolhesse o quando, mas seria uma só, uma apenas, e que depois, eles iriam, que ele tivesse calma, tomasse o seu tempo, calmo, escolhesse a música, pois teria uma música, um tango para ela desfilar coreografias, passos medidos e se deixaria tomar, arrebatada, uma dança apenas e seria um tango, e depois iriam, eu tremi, então, pois percebi, com uma choque elétrico, um raio que atravessa a mente, percebi iminência, impermantenente da morte que falava de novo comigo, não como um canção de outrora, na sala do parto, mas como um tango, uma dança, uma coreografia, o último tango em Forqueta, e depois, então o fim, e eu, surpreso, assustado, ainda no sonho, falei que não, que ali não havia música, argumentei, tentei convence-la, nem aparelho de som havia, muito menos algum disco, uma eletrola, quanto mais  um tango, pensava que assim evitaria o inevitável, e minha mãe, complacente e compreensiva me respondeu com a pergunta, se eu não conhecia Soundcloud?, é do iPhone mesmo, aplicativo, que ali poderia escolher a música que quisesse e poderia tocar a hora que desejasse, e então ela esperou que meu pai decidisse a hora de dançar a última dança e partir, que foi então quando acordei chorando, que entendi o significado sonho, significado de toda a trama, todo o fluxo, o continuo que nunca continua, que sempre termina e sempre segue, e era esse sonho que eu queria contar ontem a noite para o Zé, a Sissi, o Regis, Flavia, Pingo, Catha e Marília, mas não contei e guardei e emoção para mim, como uma relíquia, como uma esperança que se este sonho não se realizar, e se realizando, então a vida toda valeria a pena, então a  mudez, o silencio de meu pai amnésico na cama, e as dores e o cansaço de minha mãe valeriam a pena, por este tango, um só, tão curto, tão longo, tão belo, este momento eternamente breve que enlaça, como nos enlaçou no jantar de aniversário, e tão incompleto que nunca se consegue dizer ou fazer, mas que pode, em sonhos, neste universo paralelo, onírico, por um instante, redimir e depois pode-se ir, ir para sempre, não importa para onde, pois tivemos o momento, em algum lugar remanesce, memória, lembrança, DNA, histórias, palavras, em algum lugar, em algum lugar para sempre, aquilo que não existe...